O primeiro mês do ano acabou e, com ele, a campanha Janeiro Branco. Embora já estejamos na segunda quinzena de fevereiro, é necessário manter os cuidados com a saúde mental e emocional da população ao longo de todo o ano. O tema destaca-se em especial devido ao aumento no consumo de fármacos antidepressivos e estabilizadores de humor no Brasil.


Somente em Minas Gerais, entre 2019 e 2022, houve um aumento de 35% na venda desses produtos, de acordo com o Conselho Federal de Farmácia (CFF). Esse crescimento também pode ser verificado em outros estados – números que impactam e fazem subir exponencialmente as vendas em todo o Brasil. No país, foram vendidos em 2019 82,6 milhões de comprimidos. Já em 2022, esse número passou para 112,7 milhões, o que significa um aumento de 36%. Mas os números são apenas a ponta do iceberg.


De acordo com dados fornecidos pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), com base em dados do Sistema de Acompanhamento de Mercado de Medicamentos (Sammed), as vendas de ansiolíticos chegaram a 86 milhões de unidades em 2019. Já em 2020, esse número subiu para 180 milhões de comprimidos. Isso significa que as vendas mais que dobraram de um ano para outro. Vale destacar que o agente hipnótico hemitartarato de zolpidem bateu 100 milhões de unidades consumidas no primeiro ano de circulação do novo coronavírus. Antes dele, o clonazepam era o medicamento mais utilizado.


BOOM DE MEDICAMENTOS

As estatísticas de vendas de outro grupo de psicotrópicos, os antidepressivos, são ainda mais alarmantes. Para se ter ideia, as vendas de cloridrato de sertralina em 2020 chegaram a 345 milhões de unidades. Esse valor é maior que o medicamento líder nas vendas, a fluoxetina. No total, os antidepressivos, vendidos no primeiro ano de isolamento social, bateram aproximadamente 536 milhões.


Se a classe de medicamentos for comparada a de outros fármacos, ambos ultrapassaram a comercialização do cloreto de sódio, utilizado como descongestionante e para limpar ferimentos, da losartana potássica, medicamento indicado para o tratamento de hipertensão; e do cloridrato de metformina, remédio contra diabetes – os quais só no ano passado venderam entre 150 milhões e 300 milhões de unidades. E ainda que em 2021 e 2022 o consumo de medicamentos psicotrópicos tenha diminuído, ainda não se assemelham aos números anteriores à COVID-19.


Especialistas destacam que os principais fatores para o crescimento no consumo de fármacos são evidentemente resquícios do isolamento social, em que as rotinas viraram de cabeça para baixo - afetando a qualidade do sono, a alimentação e a prática de exercícios físicos. “A pandemia forçou todo mundo a enfrentar situações que não estavam preparados, e isso teve um impacto bem grande no bem-estar emocional das pessoas”, analisa Karen Scavacini, doutora em psicologia e fundadora do Instituto Vita Alere.


Segundo dados divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2020, cerca de 98% dos municípios adotaram o isolamento social frente à COVID-19, medida essa que gerou adaptação no modelo de ensino e trabalho. “O trabalho remoto e o ensino à distância trouxeram novos desafios, e a falta de interação social presencial fez muita falta”, acrescenta Scavacini. As consequências diante de tantas adaptações, inseguranças e desafios estão sendo sentidas até hoje, como depressão, ansiedade e solidão.


Outro ponto de destaque é o imediatismo em que as pessoas estão inseridas, seja nas redes sociais, na cultura ou na vida pessoal – fatores que acarretam uma ânsia em resolver os problemas instantaneamente. Mas para além disso, “o principal fator [para o aumento no consumo dos medicamentos] é que hoje temos mais acesso e conhecimento relacionados a informações sobre saúde mental e, com isso, conseguimos perceber quando algo não vai bem ou quando estamos adoecidos. Assim, procuramos mais tratamentos”, explica Juliana Pereira, psicóloga e terapeuta cognitivo-comportamental.


Por trás das pílulas

A estudante Eduarda de Abreu Oliveira, de 22 anos, decidiu iniciar, no ano passado, um tratamento com sertralina ao ser diagnosticada com transtorno de ansiedade generalizada (TAG). A jovem sofria com alterações constantes de humor; sono, alimentação e foco alterados, até desencadear um burnout.


Eduarda conta que seu diagnóstico foi negligenciado por outros psicólogos, sendo que, devido à ansiedade extrema, ela começou a apresentar sintomas como falta de atenção e foco – características do transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH). “Acredito que isso contribuiu muito para que eu chegasse na vida adulta como uma pessoa ainda mais ansiosa”, explica.


A adaptação foi um desafio também, já que a estudante teve efeitos colaterais – sintomas comuns nos primeiros dias de adaptação. A jovem relembra que iniciou a medicação próximo às férias e, enquanto as amigas queriam sair com ela, a jovem preferia ficar reclusa – comportamento diferente do habitual. Além disso, ela perdeu o apetite e teve enjoos, também sintomas comuns nessa fase. “Foi bem nítido que meu corpo estava passando por mudanças. Por ser bem instruída pelas pessoas que me acompanham psicologicamente, eu já sabia que poderia ter certos efeitos colaterais e que eu deveria ter calma com o processo. Após certo tempo tudo se normalizou”, afirma.


A gestora de finanças Cláudia Nogueira (nome fictício) começou a fazer uso do clonazepam em 2008, após um aborto espontanêo em que levou-a a uma depressão profunda. Contudo, ela relembra que logo parou, pois a ansiedade começou a piorar, gerando crises e uma paralisia no corpo.


SEM CONTROLE

“Eu via e ouvia tudo, porém não tinha controle do corpo. Meus pais disseram que minha aparência física lembrava a de uma criança com paralisia cerebral. Lembro que me deram uma injeção e apaguei. Meus pais achavam que eu estava tendo um acidente vascular cerebral (AVC)”, relembra.


Assim como Eduarda, que sentia fortes dores abdominais sem causa aparente, Cláudia descobriu que seu problema de saúde era decorrente do TAG e de uma depressão profunda. Hoje, ela faz uso da venlafaxina e do velho amigo clonazepam.


Ela também sofreu com a adaptação, por que, além dos efeitos colaterais, comuns durante a fase de ajuste da dosagem dos medicamentos, Cláudia sofreu com o estigma vindo de sua família. “Durante o ajuste, tive muitas oscilações de humor, me descontrolei várias vezes, tive crises de choro, pânico, tive sintomas que pareciam que eu estava infartando, foi um sofrimento em vida. Fui humilhada e julgada por familiares e companheiros que ameaçaram me internar no hospício. Ora porque eu estava em adaptação de medicação e ficava ainda nervosa, ora porque eu já estava mais tranquila e me chamavam de passiva. Fui vítima de todo tipo de abuso emocional”, expõe.


Indecisa sobre dar continuidade ao tratamento ou permanecer recebendo críticas e ameaças, Cláudia decidiu largar os medicamentos por conta própria. “Fiz a pior besteira da vida.” A ação levou a gestora a uma recaída em que se sentia “como um carro desgovernado, por mais que tentasse se controlar”. “O psiquiatra quase me matou quando contei. Ele explicou que em hipótese alguma eu poderia ter feito isso e que joguei fora um trabalho de anos. Eu me afastei do trabalho, fui para o INSS [Instituto Nacional do Seguro Social] e voltei a tratar.”


Doidos, preguiçosos ou doentes mentais


De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), cerca de 720 milhões de pessoas sofrem com doenças mentais em todo o mundo – aproximadamente 10% de toda a população mundial (veja quadros). No Brasil, entre as 10 maiores causas de afastamento do trabalho, cinco são por conta de transtornos mentais, como depressão e ansiedade, de acordo com a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP).


“Percebo que a população ainda não está no patamar devido de esclarecimento, pois nós, os dependentes de medicamentos, às vezes somos taxados de doidos, preguiçosos, doentes mentais. Penso que a sociedade deveria ter acesso a publicações e reportagens para compreender melhor o que de fato é a saúde mental e que qualquer pessoa está suscetível aos sintomas”, comenta a fonoaudióloga Maraney Lellis, de 42 anos.


Maraney faz tratamento com venlafaxina, clonazepam e carbolitium há um ano, após insistência da filha, a qual faz tratamento psiquiátrico e psicológico. “Antes de tomar medicamentos antidepressivos eu vivia ansiosa, muito emotiva, ficava irritada por qualquer motivo, tinha insônia, tremores, suor excessivo e não conseguia me alimentar direito, não sentia vontade de fazer nada. Pensei que os sintomas eram de ordem cardíaca”, explica.


Para ela, o paciente deve ter orientação de um psiquiatra, mas também de um psicólogo para controlar as emoções. Somando-se a isso, ela enfatiza a importância de um suporte da família e de amigos.


MAUS OLHOS

Todas as entrevistadas relataram resistência em investigar seus problemas de saúde pelo viés psicológico. Além disso, mesmo que seus círculos sociais sejam integrados por pessoas que também consumam medicamentos, as pessoas veem com maus olhos o hábito de se tratar com fármacos psicotrópicos. O preconceito se torna incoerente no país que tem como costume a automedicação. Segundo o Conselho Federal de Farmácia, 77% dos brasileiros fazem o uso de medicamentos sem qualquer orientação médica.


Por um lado, esses medicamentos são aliados na hora de tratar doenças e a indústria farmacêutica fornece um vasto arsenal de medicações, “cabendo a nós decidir por aquela mais adequada para cada paciente, com base em diversos parâmetros, como as evidências científicas e a história pessoal do paciente”, analisa Tamara Cardoso, psiquiatra da Rede Mater Dei.


Ela complementa reiterando a necessidade de um diagnóstico correto e individual, por meio de um bom profissional, pois nem todo paciente em busca de tratamento psiquiátrico precisa de medicação, bem como a avaliação multidisciplinar, como psicoterapia e exames de sangue, para avaliar se os sintomas não são de ordem orgânica.


“Uma disfunção da tireóide e deficiência de vitaminas, as quais podem causar sintomas de depressão e devem ser corrigidas adequadamente. Sendo estabelecido, então, o diagnóstico de depressão, é preciso avaliar a gravidade do episódio atual, dado que os quadros leves podem ser tratados somente com terapia ou com psicoterapia e medicação, e os quadros moderados e graves necessitam sempre de medicação”, pontua.


Supermedicalização da dor psíquica

“A indústria farmacêutica tem grande influência na forma como a sociedade lida com problemas de saúde mental. Investe grandes quantias em pesquisa para criar novos remédios e propaganda para médicos e pacientes. Isso pode favorecer o aumento do uso de medicação sem necessidade, a super medicalização da dor psíquica, a indústria também influencia os estudos científicos e até o treinamento dos médicos”, denuncia Karen Scavacini, doutora em psicologia e fundadora do Instituto Vita Alere.


Para ela, a medicação pode ser uma aliada para aliviar os sintomas mais urgentes, em especial aquela pressão, ansiedade e pânico, mas é a psicoterapia que entra para entender as causas de base e ensinar habilidades que ajudam a lidar com as questões do dia a dia. “Deve ser um trabalho lado a lado: a medicação cuida dos sintomas, enquanto a terapia cuida do lado emocional e comportamental, ajudando a pessoa a entender e mudar padrões de pensamento e comportamento. É um equilíbrio delicado, onde o objetivo não é só se sentir melhor no curto prazo, mas construir uma base sólida para o bem-estar a longo prazo.”


Na prática clínica, a dependência de medicamentos de humor traz desafios. As entrevistadas relataram a vontade de fazer o desmame (processo para largar o medicamento) e não ser mais dependente de algum fármaco. “Os pacientes às vezes podem começar a sentir que sem aquele comprimido, eles não conseguem funcionar ou enfrentar o dia. Isso pode mexer com a autoestima e com o sentimento de controle sobre a própria vida. Porém é fundamental trabalhar o medo e o preconceito, os tratamentos não devem ser interrompidos ou alterados sem prescrição médica”, ressalta Karen.


COMO AGEM NO ORGANISMO?

Existem antidepressivos de diferentes classes a depender do seu mecanismo de ação. Os antidepressivos mais conhecidos, como a sertralina e a fluoxetina, agem no sistema nervoso central (SNC) aumentando a disponibilidade de um neurotransmissor chamado Serotonina, que está reduzido nos pacientes portadores de depressão. Outros antidepressivos pertencentes a outras classes atuam aumentando a disponibilidade de outros neurotransmissores além da serotonina, como a dopamina e a noradrenalina. O aumento da disponibilidade desses neurotransmissores é o que levará à melhora dos sintomas depressivos, como a tristeza, a desmotivação e a insônia.


* Estagiária sob supervisão da editora Ellen Cristie.

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