O cérebro humano tem uma capacidade extraordinária de distinguir rapidamente estranhos e conhecidos. Ao mesmo tempo, retém detalhes sobre essas pessoas ao longo de décadas de encontros. Agora, em estudos com ratos, cientistas do Instituto Zuckerman da Universidade de Columbia, nos Estados Unidos, elucidaram como o órgão realiza as tarefas com tanta competência.
Stefano Fusi, coautor do estudo e professor de neurociência no Vagelos College of Physicians and Surgeons da Columbia, destacou que o artigo, publicado ontem na revista Neuron, traz a primeira evidência de que uma única população de neurônios pode empregar códigos diferentes para representar indivíduos novos e familiares. Na pesquisa, os cientistas avaliaram a memória social — a habilidade de se lembrar de encontros com outras pessoas.
Esse tipo de memória envolve dois processos mentais diferentes: distinguir entre indivíduos novos e familiares e se lembrar de características específicas daqueles que são reconhecidos. Conforme os cientistas, pesquisas anteriores tiveram dificuldades para identificar como o cérebro cumpre essas tarefas complexas.
Achar uma pessoa familiar exige bastante do órgão: ele precisa puxar informações de vários locais e eventos passados, para descobrir de onde reconhece um indivíduo específico, dentro de tantas experiências vividas. No novo estudo, os cientistas avaliaram uma região do cérebro chamada CA2, uma parte do hipocampo essencial para a memória.
Para isso, eles analisaram os cérebros de ratos usando imagens de cálcio, técnica que utiliza células geneticamente modificadas, que mudam de cor rapidamente quando ativadas. O grupo registrou, pela primeira vez, como as células CA2 dos animais reagiram quando expostas a estranhos ou familiares. Posteriormente, utilizaram métodos computacionais para analisar o padrão de atividade em cerca de 400 a 600 neurônios da área estudada.
Eles notaram que a mesma população de neurônios codifica memórias de familiares e desconhecidos. De forma inesperada, as estruturas usam diferentes padrões de atividade dependendo do nível de familiaridade do rato com o outro roedor. Quando os animais foram expostos a outros de desconhecidos, a atividade em CA2 foi relativamente simples, enquanto a exposição a irmãos familiares provocou uma ação mais complexa.
Conforme o trabalho, os cientistas sugerem que a atividade neural mais complexa pode ajudar o cérebro a codificar memórias detalhadas de encontros passados com indivíduos familiares. Enquanto a ação mais simples pode facilitar a identificação confiável de novos indivíduos, em diferentes situações.
Renan Coutinho, neurologista e especialista do sono na Interneuro, em São Paulo, reitera que todo nosso cérebro está envolvido na manifestação da memória. "Quanto maior a conexão dos neurônios, maior será a capacidade de evocação dessas memórias. Nesse contexto, o hipocampo, parece ser o grande maestro no fortalecimento e evocação dessas sinapses, uma vez que possui muitas interações com diversas regiões encefálicas."
O futuro
Steven A. Siegelbaum, coautor do ensaio e cientista da universidade, observou que seres humanos podem saber rapidamente se alguém é conhecido, mas que pode haver dificuldade em lembrar os detalhes de onde e como se conheceu esse indivíduo. "Especialmente quando encontrado fora do contexto."
Lorenzo Posani, principal coautor, frisou que quando se conhece alguém novo, são usadas categorias abstratas para descrevê-lo. "À medida que os conhece, eles se tornam uma pessoa e uma personalidade específicas", disse. Segundo o especialista, essa descoberta sobre a codificação de detalhes pode fornecer visões sobre distúrbios que afetam a memória.
"Quando olhamos para diferentes modelos de doenças humanas em ratos, como esquizofrenia ou Alzheimer, que são conhecidos por afetar a memória, agora podemos perguntar com mais precisão como as atividades neurais que apoia a detecção e a lembrança da familiaridade podem ser alteradas", sublinhou Siegelbaum.
Feres Chaddad Neto, neurocirurgião da Beneficência Portuguesa (BP), de São Paulo, salienta que a região CA2 ainda é pouco estudada, diferentemente das sub-regiões CA1 e CA3. "Vejo várias maneiras pelas quais essa pesquisa pode contribuir para o desenvolvimento de novas estratégias de intervenção em distúrbios como a esquizofrenia e o Alzheimer. Primeiramente, a compreensão de como o cérebro codifica e armazena memórias sociais pode ajudar a identificar alvos terapêuticos para melhorar a função cognitiva em pacientes com distúrbios de memória, como o Alzheimer."
Conforme o especialista, ao entender melhor como as memórias sociais são formadas e recuperadas, "podemos desenvolver intervenções que visam melhorar esses processos em pacientes com comprometimento cognitivo."
Para os estudiosos, a esperança é que o aprendizado leve a uma melhor compreensão dos tipos de intervenções que podem conseguir recuperar os problemas de memória característicos desses distúrbios.
Stefano Fusi e Steven Siegelbaum acreditam terem descoberto que o CA2 é muito mais geral e com princípios que podem ser aplicados a qualquer tipo de memória. "Realizaremos estudos semelhantes em humanos e tentaremos compreender o quão gerais são esses princípios. Estamos examinando se manipulações farmacológicas ou genéticas específicas do CA2 podem melhorar o comportamento social em modelos de camundongos de distúrbios genéticos humanos", narraram ao Correio.
Maurício Hoshino, neurologista do Hospital Santa Catarina, pondera que, apesar dos avanços, a complexidade das interconexões cerebrais para produzir essa resposta está longe de ser compreendida, mesmo em roedores, cuja arquitetura neuronal já é bem mais conhecida do que em outros mamíferos. "Qualquer pesquisa que leve a um esclarecimento dos mecanismos de memória deve ser comemorada, embora os resultados obtidos em pesquisa básica estejam longe de uma aplicação em humanos."
Um possível marcador
"Eventualmente, se for desenvolvida uma nova tecnologia para se ver isso em vivo, na pessoa viva, talvez a perda dessa complexidade do funcionamento neuronal, ao notar um indivíduo que é conhecido, pode ser um marcador de que aqueles neurônios não estão funcionando da forma ideal. Ou seja, que eles estariam se desajustando e que isso poderia estar relacionado à perda da familiaridade, que vemos no Alzheimer. Temos muitas dúvidas no campo do estudo da memória. Todos os estudos que trazem mais luz a esses mecanismos de memória acabam tendo interesse, sendo importantes e, por enquanto, a gente ainda não vê uma perspectiva de tratamento baseado nos resultados de estudos como esse. É uma área de bastante desafiadora nas neurociências."
Marcelo Lobo, neurologista do Hospital Santa Lúcia, em Brasília