Imagine a seguinte rotina: acordar cedo, começar os cuidados do dia com a casa, com os filhos e com o trabalho, gerir as pendências da casa, ir ao mercado, cuidar da limpeza e da alimentação dos que convivem contigo, levar os pais e filhos ao médico e aos exames. É fácil lembrar de alguém conhecido com essa rotina, como se estivessem no recheio de um sanduíche transgeracional. Assim se chama esse fenômeno frequente nas casas brasileiras: geração sanduíche. Trata-se do dia a dia de pessoas que dedicam suas horas a cuidar não só da casa, trabalho e vida pessoal, mas também dos mais velhos e dos mais novos com quem moram.
A médica paliativista e intensivista, Carol Sarmento, diz que frequentemente vê seus pacientes, principalmente mulheres, enfrentando essa rotina dita sanduíche. Esses grupos em sua grande maioria são compostos de mulheres que, historicamente, já estão sobrecarregadas devido às dinâmicas da sociedade e a uma divisão desigual e injusta. “Ser responsável pelo cuidado dos descendentes e ascendentes é desafiador no cenário emocional, financeiro e físico”, explica a médica. Carol enfatiza que as pessoas que se encontram nesse cenário são propensas a sofrerem estresse crônico e transtornos psicológicos e mentais em decorrência da sobrecarga. São pessoas que não conseguem priorizar o próprio bem-estar, descanso, autocuidado e desenvolvimento pessoal.
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Dados da Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílio Contínua (Pnad Contínua) do IBGE, em 2019, demonstraram que 54,1 milhões de brasileiros com 14 anos ou mais cuidavam de outros moradores da sua casa ou de parentes. Em 2022, o mesmo IBGE apontou que a geração sanduíche corresponde a mais de um terço da população, sendo 51% mulheres. Segundo Dani Moraes, escritora e educadora emocional, é comum que a responsabilidade pelo cuidado multigeracional tenha demandas semelhantes, ainda que de natureza diversa.
As pesquisas sobre essa parcela da população indicam que o fenômeno é prevalente entre mulheres de 35 a 49 anos, que cuidam e moram ao mesmo tempo com crianças, jovens (que saem cada dia mais tarde de casa) e idosos. “Se considerarmos ainda as mulheres, responsáveis por esses cuidados, que não necessariamente convivem na mesma casa, o número é ainda maior”, destaca Dani. Ela ressalta que a convivência multigeracional pode, sim, gerar benefícios e trocas ricas para as relações, o problema é o trabalho do cuidado de ambas as gerações ser uma atribuição compulsória das mulheres.
Cansaço e frustração
“Depois de cumprir uma lista interminável de tarefas, essas mulheres chegam ao final do dia extremamente cansadas e com uma inevitável sensação de frustração. Afinal, não é possível dar conta sozinha de tantas atribuições. O que vemos são mulheres sofrendo por questões de saúde mental, muitas delas medicalizadas, não com a intenção de cuidarem do seu próprio bem-estar, mas, sim, para que possam continuar funcionais, mantendo uma rotina exaustiva, sem qualquer percepção ou alteração na qualidade de vida”, conclui Dani, que faz parte do projeto Cuida, idealizado pela médica Carol Sarmento para levar informações sobre autocuidado para públicos diversos.
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Uma visão para o futuro dessas mulheres
A idealizadora do Cuida, Carol Sarmento, acredita que seria socialmente importante que a atual geração sanduíche fosse a última a viver dentro dessa realidade, rompendo com esse ciclo de sobrecarga. “Não basta apenas que os adultos de meia-idade saiam dessa situação, mas também garantir que as gerações futuras não tenham o mesmo destino”, explica.
Para isso, é necessário, por exemplo, se preparar financeiramente para dar suporte aos pais e filhos em crescimento – ajustar as expectativas financeiras, planejar investimentos, seguros e a aposentadoria. “É essencial também que essas mulheres estabeleçam limites, recebam ajuda dos demais familiares nas demandas e custos envolvidos, sem se valer de uma postura evitativa e que tende a recusar o apoio de outros”, destaca a médica.
Para Dani Moraes, “é preciso também repensar as políticas públicas que envolvem toda a cadeia do cuidado em nossa sociedade”. A educadora e pesquisadora acredita que “as questões estruturais não garantem condições sequer para a criação das crianças, que dirá para dar conta dos cuidados específicos com idosos”.
Dani enfatiza que, diante disso, até mesmo os cuidados pessoais básicos são percebidos como mais uma obrigação na vida dessas mulheres. “Falamos da importância do autocuidado, que de fato é essencial, afinal, precisamos estar bem cuidadas para poder cuidar, porém, diante de tamanha responsabilidade acumulada, essa necessidade muitas vezes é percebida como mais uma exigência”, alerta.