Resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) publicada nesta quarta-feira (3/4) inviabiliza a realização de aborto nos casos previstos em lei após 22 semanas de gestação. A norma proíbe a realização de um procedimento que provoca a morte do feto antes da sua retirada do útero. Segundo médicos e advogados ouvidos pela reportagem, a proibição vai impedir a realização de abortos legais.

 

A norma publicada veta a assistolia fetal, que envolve a injeção de produtos químicos que interrompem os batimentos cardíacos do feto. Depois disso, é feito um procedimento parecido com o parto para a retirada do bebê.

 

 



 

A assistolia é uma recomendação técnica da Organização Mundial da Saúde (OMS) em casos de aborto legal acima de 20 semanas. Entre outras razões, é indicada para evitar que o feto seja expulso com sinais vitais antes da sua retirada do útero, além de prevenir o desgaste emocional e psicológico das pacientes e equipes médicas.

 

A decisão do CFM ocorre pouco mais de um mês após o Ministério da Saúde suspender nota técnica que estabelecia que não deveria haver limite temporal para a interrupção da gravidez nos casos previstos em lei - o Código Penal não estabelece limite de tempo. O recuo da pasta se deu após pressões de bolsonaristas.

 

A nota do ministério anulava decisão anterior do governo de Jair Bolsonaro (PL) que impunha o limite temporal de 21 semanas e seis dias para o aborto legal.

 

Avaliações

Para Henderson Fürst, presidente da Comissão Especial de Bioética e Biodireito da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), o recuo do ministério abriu brecha para atual resolução do CFM. "Agora temos uma restrição certa em relação ao aborto legal", analisa.

 

Segundo ele, as vítimas de estupro que tenham passado da idade gestacional de 22 semanas e queiram ter acesso à interrupção vão precisar procurar apoio judicial, por exemplo, um pedido de habeas corpus ou de alvará judicial.

 

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"Os médicos vão se recusar a realizá-lo com receio tanto de uma persecução criminal quanto por uma persecução no âmbito ético-profissional nos CRMs (Conselhos Regionais de Medicina)", prevê Fürst.

 

Para o médico e ginecologista Raphael Câmara, relator da resolução do CFM, a medida não proíbe que os médicos façam a antecipação do parto nos casos previstos em lei, mas, na prática, haverá receio em realizá-lo.

 

"Muitos não vão fazer. Nenhum médico vai ter coragem de fazer a antecipação de parto com 22, 23, 24 semanas, porque as chances de sair sequelado é muito grande. Quem é contra a resolução tem que deixar claro que é a favor de matar bebês de nove meses na barriga", diz ele, ex-secretário de Atenção Primária à Saúde do Ministério da Saúde durante o governo de Jair Bolsonaro (PL).

 

Na opinião de Henderson Fürst, a resolução do CFM é inconstitucional porque a lei que regulamentou o aborto legal, em momento algum, estabelece uma restrição temporal para a sua realização.

 

"Essa restrição de direitos é inconstitucional. A Constituição diz que você só pode ter direitos restringidos com base em lei, não em uma resolução", diz Fürst.

 

"Atenta contra os direitos" 

 

Segundo o ginecologista e obstetra Cristião Rosas, coordenador no Brasil da Rede Médica pelo Direito de Decidir (Global Doctors For Choice - GDC), a resolução é um equívoco grandioso e, na prática, inviabilizará os abortos legais acima de 20 semanas.

 

"Ela atenta contra direitos legais, constitucionais e humanos de meninas e mulheres mais vulneráveis e marginalizadas da sociedade brasileira. Os direitos dos fetos não estão acima dos direitos de mulheres e meninas", afirma.

 

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Füsrt tem a mesma avaliação. "Por mais que digam que é uma criança com viabilidade de vida extrauterina, temos que considerar que estamos diante de uma vítima de estupro, que engravida contra a sua vontade, em um país com incontáveis barreiras à realização do procedimento."

 

Entre os entraves estão os transtornos emocionais causados pelo estupro que "paralisam" a vítima, retardando a tomada de decisões, a falta de informação dos hospitais que realizam abortos legais e o número insuficiente, o que obriga as mulheres a viajarem longas distâncias até realizá-lo, além da alegada objeção de consciência de equipes médicas que se recusam a fazer a interrupção.

 

"Muitas vezes se ultrapassa o tempo gestacional das 22 semanas não por vontade dessas mulheres, mas, devido a essas barreiras, o tempo vai decorrendo", diz ele.

 

Raphael Câmara discorda da tese de inconstitucionalidade e diz que a resolução foi discutida por mais de um ano, por três câmaras técnicas (bioética, obstetrícia e pediatria) e passou por avaliação de três plenárias no CFM.

 

Entre os argumentos a favor da norma, ele cita que ela já estava prevista no manual publicado durante sua gestão no Ministério da Saúde, no governo Bolsonaro, e que, mesmo após ser questionado no Supremo Tribunal Federal, não foi derrubado.

 

"O aborto legal é um procedimento médico e cabe ao CFM decidir quais procedimentos que o médico pode ou não fazer baseado em princípios bioéticos. (A assistolia) é um procedimento com zero beneficência para a mulher e total maleficência para o bebê", afirma Câmara.

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