Margareth Dalcolmo ocupa a cadeira de número 12 na Academia Nacional de Medicina; a pneumologia é uma das pioneiras na luta contra o tabagismo no Brasil -  (crédito: Léo Ramos Chaves-Revista Pesquisa FAPESP)

Margareth Dalcolmo ocupa a cadeira de número 12 na Academia Nacional de Medicina; a pneumologia é uma das pioneiras na luta contra o tabagismo no Brasil

crédito: Léo Ramos Chaves-Revista Pesquisa FAPESP

“Proteção das crianças contra a interferência da indústria do tabaco” é o tema da campanha lançada pelo Ministério da Saúde e o Instituto Nacional de Câncer (Inca) para marcar o Dia Mundial Sem Tabaco, nesta sexta-feira (31/5). O enfoque ocorre devido ao aumento no consumo dos cigarros eletrônicos, também chamado de vape, por crianças, adolescentes e jovens adultos. Dados da última Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar (PeNSE) revelam que, em 2019, 16,8% dos estudantes no Brasil com idade entre 13 e 17 anos já haviam experimentado o cigarro eletrônico. Em 2022, 2,2 milhões de pessoas já consumiam o vape. 


A pneumologista Margareth Dalcolmo, presidente eleita da Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia (SBPT), biênio 2023-2024, é uma das pioneiras na luta contra o tabagismo no Brasil. Estudiosa de doenças pulmonares, a pesquisadora da Fiocruz é referência nacional e internacional  - conduzindo e participando de protocolos de pesquisas clínicas e nos tratamentos da tuberculose e outras doenças pulmonares. 


 

Margareth ocupa a cadeira de número 12 na Academia Nacional de Medicina, espaço dedicado a especialistas que se destacaram na área da saúde. Além de uma trajetória ímpar, a especialista atuou veemente durante a pandemia de COVID-19, reforçando o isolamento social e a importância da vacinação. 


Em entrevista ao Estado de Minas, a pneumologista discute a relação do tabagismo com as doenças respiratórias e câncer de pulmão, além do crescimento do uso de cigarros eletrônicos. 


O hábito de usar cigarros eletrônicos, os chamados “vapes”, é associado principalmente aos jovens. Como você enxerga essa adesão vinda dos mais novos e não dos adultos e mais velhos?

Os cigarros e os dispositivos eletrônicos de tabaco aquecido vieram em substituição aos convencionais, numa criação que eu chamo de “diabólica”, pela indústria tabagista, quando se observou que o mercado de usuários de cigarros convencionais havia diminuído no mundo. No Brasil, por exemplo, reduzimos em 40% a população brasileira que era fumante há 30 anos, para um pouco mais de 10% hoje, de acordo com dados de 2023. Os dispositivos eletrônicos entraram no mercado norte-americano, o primeiro onde eles foram aprovados, em 2007. A partir daí, começou a rápida disseminação, tanto no mercado norte-americano quanto em outros, atingindo faixas etárias mais jovens, adolescentes e crianças, que são muito atraídas, já que estão sempre juntas e em grupos, e atraídas por formas e apresentações muito glamorosas. Esses dispositivos de tabaco aquecido são apresentados em formas de pen drive, 'canetinha', batom, com sabores e aromatizantes, então eles têm cheiro e, eventualmente, uma fumaça colorida.

Jovem branca fumando cigarro eletrônico

Em 2019, 16,8% dos estudantes no Brasil com idade entre 13 e 17 anos já haviam experimentado o cigarro eletrônico

Master1305/ Freepik

Os cigarros eletrônicos podem diminuir a adicção por cigarros comuns? E o cigarro de palha, o paiol, é mais natural?


Isso não é verdade, ninguém que sai do cigarro e entra no vape, sai do vape. A Inglaterra está vendo isso, fornecendo gratuitamente, pelo National Health, esses dispositivos para aqueles maiores de 18 anos que quisessem parar de fumar. E o resultado tem sido muito frustrante, porque ninguém para. Além disso, as crianças menores de 18 anos continuam comprando no contrabando, com cambistas, nas portas dos colégios, de maneira ilegal. Isso fez com que na União Europeia alguns países estejam revendo sua regulamentação, como a Bélgica, que acaba de definir, há duas, três semanas, que a partir de 1º de janeiro de 2025 estará completamente proibido, como no Brasil, de entrar no território, fazer propaganda, fumar etc.

 

Acho que a tendência do mundo, a despeito da enorme pressão que estamos sofrendo no Brasil, é que ele cairá em si de que essa criação realmente foi uma infelicidade do ser humano, que é tão capaz de criar coisas bonitas e saudáveis para as pessoas. Já os cigarros de palha são muito mais tóxicos porque eles usam fumo, tabaco muito cru, então eles têm uma quantidade enorme de substâncias inaladas. O cigarro de palha é ainda mais nocivo.


Doenças como o câncer têm crescido exponencialmente no Brasil. Como o tabagismo contribui para esse cenário?


As doenças decorrentes do uso tabágico são as chamadas doenças pulmonares obstrutivas crônicas (DPOCs), como o enfisema pulmonar, que são doenças indeléveis - um processo que, uma vez iniciado, vai ficar. O pulmão não é um órgão que se regenera quando há uma ruptura da sua arquitetura e estrutura alveolar. Quando isso é rompido, não tem volta. Estamos vendo isso em jovens. Tenho pacientes de 23 anos com um quadro que você olha e parece uma pessoa de 100 anos de idade. E a gente fica com muita pena de pensar que este jovem vai carregar aquelas consequências para o resto da vida. A outra questão é o câncer de pulmão. É só uma questão de tempo para os trabalhos começarem a serem publicados sobre a incidência de câncer de pulmão em usuários de dispositivos eletrônicos de fumar. Não há dúvidas que é só uma questão de tempo. Haverá um recuo histórico que vai permitir que uma análise retrospectiva desses usuários seja feita. 


O que você diria aos jovens usuários desses dispositivos?


Eu diria: não se iludam, não pensem que vocês vão fumar quando quiserem, não é verdade. Vocês vão fumar quando o seu cérebro mandar que vocês fumem. Porque quem está dependente é o seu cérebro. E é ele que vai dizer que você vai fumar. É o que a gente tem visto: acordam e já pegam o vape e começam a fumar às sete, oito horas da manhã. Já sabemos que há substâncias cancerígenas. Sequer conhecemos todas as substâncias das quais são compostos esses dispositivos. Mas sabemos que são centenas e inclusive cancerígenas, que é a nossa grande preocupação. Os cigarros eletrônicos têm na sua composição uma substância, entre outras, chamada propilenoglicol, altamente cancerígena quando entra em combustão.


Na foto, a pneumologista Margareth Dalcolmo, presidente eleita da Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia - SBPT (biênio 2023-2024)

'Acho que a tendência do mundo, a despeito da enorme pressão que estamos sofrendo no Brasil, é que ele cairá em si de que essa criação realmente foi uma infelicidade do ser humano, que é tão capaz de criar coisas bonitas e saudáveis para as pessoas'

Arquivo Pessoal

 

Inclusive no Brasil, temos um problema metodológico, digamos, porque sequer podemos desenvolver estudos já que os produtos são proibidos de entrar no país. Os que estão entrando são contrabando ou produtos falsificados - feitos em fábricas clandestinas. É por isso que temos sido tão rigorosos com a questão da fiscalização.


Essa semana mesmo, foram algumas toneladas recolhidas pela Polícia Federal. O ideal seria que tivéssemos acesso à parte dos produtos confiscados pela PF, e que pudéssemos eventualmente estudá-los, porque são produtos proibidos de circular no Brasil. Então, em qualquer cidade brasileira você encontra facilmente e são uma questão da classe média porque ainda são caros. Pobre vai fumar cigarro avulso, quando fuma. Esse problema chegou ao Brasil trazido do exterior, porque aqui não há proibição [do cigarro convencional] e nem terá. Mas ficamos muito satisfeitos com a ratificação pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) da regulamentação que proíbe os cigarros eletrônicos e que tem vigência no Brasil desde 2009, pela resolução nº46. Agora em 2024  ratificamos isso em uma votação histórica de cinco a zero, com pareceres muito bem fundamentados.

 

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Hoje há um projeto, uma catástrofe, que propõe a liberação geral desses dispositivos com o argumento de que vai arrecadar imposto, que vai dar emprego etc. Isso é tão doente que eles já conseguiram envolver as pessoas do agro, que trabalham nas plantações de tabaco, quer dizer, essas pessoas estão sendo manipuladas para dar depoimento de que precisam produzir, de emprego etc. Ora, que se tenha outra alternativa de empregabilidade para essas pessoas. Cabe ao governo, ao estado, ter essas alternativas. Mas não usar esse argumento para produzir algo que faça tão mal à saúde.


Mas como acabar de vez com essa questão? 


Nós vamos mitigar esse problema quando conseguirmos descontaminá-lo dessa politização que está acontecendo neste momento. Esse não é um problema que cabe ao parlamento e, no entanto, é o parlamento brasileiro que está lidando com isso, inclusive, há projetos de lei no Senado a favor da venda, fabricação e propaganda, como se fosse algo inofensivo. E não é. Na verdade, há um equívoco. Nossa intenção hoje, como presidente da SBPT, é pedir uma audiência ao presidente do Senado para que consigamos acabar com isso e que sequer seja levado para votação. É tão impensável, não faz sentido. Isso é assunto de natureza médica, não é um assunto nem de natureza econômica. Portanto, a meu ver, é descabido que essa discussão tenha sido levada ao parlamento.

* Estagiária sob supervisão da editora Ellen Cristie.