Nem tudo são flores na maternidade, função romantizada pela sociedade que impõe sobre a mulher uma sobrecarga enorme de tarefas e responsabilidades. Ser mãe atípica então é um desafio maior ainda. A expressão foi cunhada para chamar a atenção da sociedade para as necessidades da mulher que cuida de filhos com deficiência ou algum tipo de síndrome e transtorno que afeta o desenvolvimento neuropsicomotor.

 

São mães vistas pela sociedade como “guerreiras”, que abdicam da vida para cuidar integralmente dos filhos. Na maioria das vezes, por trás desse mito, tem uma mulher enfrentando problemas financeiros, abandono, preconceito, cobrança, sobrecarga de tarefas, falta de políticas públicas e abalo na sua própria saúde mental.

 

 

 

“Quem cuida dessas mães? Quais políticas públicas a gente têm para essas mães?”, questiona a jornalista Mariana Viel, de 43 anos, mãe de Cecília Viel, de 5, portadora de lisencefalia, uma síndrome rara caracterizada pela ausência de rugosidade no cérebro, que afeta o desenvolvimento neuromotor das crianças.

 

“A vida da mãe atípica é um estresse muito grande. Eu fui diagnosticada com burnout do cuidador. Tudo só cai na gente. Estruturalmente, as maiores dores e os maiores amores são nossos. A gente só cuida”, desabafa a jornalista, que precisa de toda uma rede de apoio para realizar todas as tarefas do cotidiano e até mesmo para ter direito a momentos de lazer.

 



 

“É uma luta”

“Eu canto em um grupo de samba, mas só posso marcar show para os finais de semana em que a Cecília está com o pai. Para sair à noite tenho que pedir ajuda. É uma luta”, conta. E também um luto, afirma Mariana.

 

Mariana Viel teve "burnout do cuidador", mas diz que cada conquista da filha, Cecília, de 5 anos, tem um sabor especial

Túlio Santos/EM/D.A Press
 

 

Para ela, os desafios de uma mãe atípica começam em aceitar que seu filho não vai ter o desenvolvimento normal e idealizado de uma criança típica. Passam ainda pela falta de políticas públicas e pela pouca empatia da sociedade com a vida dessas mães. Mas as conquistas do dia a dia de uma criança atípica, com deficiência como Cecília, afirma Mariana,têm um sabor especial.

 

 

“A Cecília não vai fazer muitas coisas que uma criança típica faz, mas o carinho que ela aprendeu há pouco tempo a fazer em mim, por ser ela, do jeito dela, ele tem um sentido muito mais especial”. Cecília, que não fala, não anda e não consegue ficar sentada ereta, precisa de cuidados intensivos. A mãe se vira para dar conta da demanda com a ajuda de outras duas mulheres, a mãe, Graça Viel, e a irmã, Isabela.

 

“É a minha aldeia”.

Para facilitar a vida, marcada por terapias, consultas e enorme logística para se deslocar, Mariana se mudou com a filha para o mesmo prédio onde moram a mãe e a irmã. Elas moram porta a porta. “Nem sei o que seria da minha vida sem a ajuda delas. É a minha aldeia”, afirma Mariana.

 

 

 

Essa aldeia necessária para criar filhos, no caso da maternidade atípica, geralmente é formada por outras mulheres, quase sempre as próprias mães. É o caso, por exemplo, da estudante universitária de enfermagem, Ketlen Luz, de 23 anos, mãe de Bryan Leonardo, de 7, diagnosticado com autismo aos dois anos.

 

A mãe, Adelice Luz, e a tia Delma Luz, são a aldeia de Ketlen, que cria o filho sem a ajuda do genitor. “Desde a gravidez, o genitor, não falo pai, pois ele não merece esse título, nunca me ajudou. Quando mandei para ele o diagnóstico de autismo ele respondeu com um ok. Quem me ajudou e me ajuda sempre é minha mãe e também minha tia. Elas são maravilhosas. Amo demais”, declara.

 

“Antes, eu não tinha vida”

Com essa rede de apoio, Ketlen conta que conseguiu, depois de sete anos, “encaminhar mais ou menos sua vida”. “Antes, eu não tinha vida. Minha vida era no posto de saúde atrás de consulta e tratamento. Eu abdiquei de tudo e passei a viver no modo automático”, conta a jovem, cujo maior desejo no momento é poder trabalhar, mas, além da falta de tempo, ela teme perder o benefício, caso arrume um emprego. “E se perder o emprego?”, questiona.

 

 

Ketlen Luz é mãe de Bryan Leonardo, de 7 anos, diagnosticado com autismo. Ela não receba ajuda do pai do menino, mas conta com o apoio da mãe e da tia

Edésio Ferreira/EM/D.A Press

 

Ela recebe um auxílio do INSS para ajudar nas despesas do filho que faz diversos tratamento pelo SUS, mas sonha em poder trabalhar fora de casa. “Eu sou muito julgada por não trabalhar fora e por receber um salário mínimo para ajudar na criação do meu filho. Todo mundo acha que cuidar da casa e de uma criança atípica não é trabalho. Agora quem vai olhar o Bryan para mim, quem vai levá-lo nas terapias que ele precisa fazer para se desenvolver? Isso ninguém vê”, questiona.

 

Dois lados de uma realidade

Psicóloga, especialista em acessibilidade, inclusão e orientação para famílias com filhos atípicos, Fernanda Coelho vive os dois lados da moeda. Além de trabalhar como tema, tem dois filhos com atipicidades e também já foi diagnosticada com transtorno autista. Na lida cotidiana e profissional, o que ela mais vê são“mães atípicas sobrecarregadas e invisibilizadas”.

 

“A sociedade cobra muitas respostas e resultados dessa mãe, mas não ajuda em nada”, analisa Fernanda, que também é professora universitária, procuradora municipal e tutora de um cachorro e oito gatos. “Atendo muitas mães adoecidas que desenvolveram transtornos por causa da condição de ter que cuidar de filhos com necessidades específicas, porque a sociedade fala muito bonito, mas, na hora de incluir mesmo, isso não acontece. O que acontece são cobranças”, critica.

 

“O nível de cobrança é muito alto”

Se pudesse resumir sua experiência como mãe atípica e profissional dessa área, Fernanda conta que daria um conselho para quem enfrenta o desafio dessa maternidade fora dos padrões esperados. “Eu diria para essas mães terem um pouco de compaixão por elas mesmas, porque o nível de cobrança é muito alto. Ela vem de fora e de dentro. As mães sofrem demais com muita culpa”, destaca Fernanda, para quem a maternidade atípica é um ciclo onde todos aprendem, um com o problema do outro.

 

Ela também recomenda a busca por ajuda profissional. Muitas faculdades, destaca, têm serviços voltados para auxiliar as mães que muitas vezes enfrentam dificuldades financeiras e não contam com a ajuda do genitor nem emocional, nem financeiramente.

 

Mudança na lei pode garantir benefícios

Michelly Siqueira, advogada especialista e ativista pelos direitos das pessoas com deficiência (PCD) defende a mudança na lei que concede benefício de prestação continuada (BPC) para a mãe atípica para poder viabilizar a entrada dessas mulheres no mercado de trabalho e garantir, além de maior renda, autonomia.

 

 

 

Segundo ela, o BPC é vinculado à renda per capta da família,“o que realmente pode inviabilizar essa mãe de trabalhar de carteira assinada, porque quando ela trabalha de carteira assinada e esse valor, ao ser somado à renda familiar, ultrapassar aquele critério de renda de um quarto de salário mínimo, lamentavelmente ela pode ter o seu benefício suspenso”, explica a advogada, que também preside a Comissão de Defesa dos Direitos da Pessoa com Deficiência.

 

Auxílio permanente

Ela conta que já levou uma solicitação ao Congresso Nacional para que o BPC não seja vinculado à renda per capta da família e sim à pessoa com deficiência. “Para viabilizar que essa mãe trabalhe e para garantir uma melhor qualidade de vida para essa pessoa com deficiência”, acrescenta. A especialista também é a favor da criação de um auxílio permanente “para essas mulheres que largam a sua vida para cuidar do outro”.

 

Segundo ela, tramita na Câmara dos Deputados, em fase ainda inicial, um projeto que cria o auxílio permanente para aquelas mães que cuidam de pessoas com deficiência.“Mas ainda é um projeto de lei que precisa passar pela Câmara dos Deputados, nas comissões, no Senado Federal, até se tornar uma lei.”

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