Dados mais recentes da Fundação Abrinq apontam que a violência sexual afeta majoritariamente crianças e adolescentes no Brasil - o grupo representa 73,8% de todos os casos. Além disso, 68,7% das vezes o abuso acontece no ambiente residencial. O combate à violência sexual, sobretudo em crianças, não é apenas importante, mas fundamental. "Quais são as consequências dessa violência para as crianças nos anos seguintes? Como isso pode impactar as relações amorosas, a saúde mental e a vida de modo geral no futuro? É possível superar esse abuso? Quais ferramentas auxiliam nesse processo?", questiona o gestor de projetos em inovação e diretor de marketing do aplicativo Mais Alívio, Marcus Cunha, que viveu na pele o problema.
Em maio, quando o governo federal reforça a campanha contra o abuso e a exploração sexual infantil, a plataforma, criada em um primeiro momento para suporte a pacientes e familiares com diferentes patologias, se alinha às ações de combate e conscientização sobre a questão, lançando luz não apenas sobre as medidas preventivas, mas também sobre tudo aquilo que procede o abuso.
No vídeo institucional da campanha batizada Caminhos de Cura, Marcus vem a público contar o que enfrentou. Hoje, com 28 anos, sofreu abusos sexuais durante boa parte da infância e adolescência. Nascido em Belo Horizonte, primeiro foi vítima de um vizinho, dos quatro aos seis anos, depois de um professor, entre 10 e 13 anos e, quando se mudou para Nova Serrana, no interior de Minas, mais uma vez se deparou com a situação, sendo abusado por um outro vizinho, dos 10 aos 16.
A ação do Mais Alívio, mais que a prevenção, como é o foco da campanha nacional, fala sobre como cuidar da vítima depois que o abuso aconteceu, e com isso veio à tona a atenção à saúde mental. Os efeitos da violência sexual em crianças e adolescentes não ficam restritos a apenas esse estágio da vida, constata Marcus. "A questão não é apenas a dor no momento do abuso, mas as consequências e sequelas ao longo de toda a vida. Sequelas que tendem a acompanhá-los ao longo do seu desenvolvimento, podendo afetar suas relações sociais, sexuais, físicas e psíquicas."
Além de falar sobre como cuidar e dar orientações, para Marcus é preciso mostrar que passar por isso é possível. "E o meu depoimento é verídico. Seria omisso se não contasse a minha história. Eu consegui superar e, para quem vive a mesma situação, o impacto é maior ao escutar de outra vítima", declara, mostrando na campanha como pôde atravessar esse caminho de cura.
Para ele fica a constatação de que quem experimenta o abuso invariavelmente manifesta um sentimento de culpa, vergonha, inferioridade, incompreensão e dificuldade para determinar o que é ou não real, sensações que contribuem para o isolamento e dificultam a socialização. Outros estudos apontam, ainda, que a pessoa pode desenvolver perturbações no sono, distúrbios alimentares e dificuldades para se relacionar novamente, o que afeta o dia a dia e impede um cotidiano saudável.
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"Mas não poderia fazer nada para mudar essa situação. Para vítimas que são mais velhas, é olhar no espelho e saber o quanto são fortes e especiais. Se não fossem fortes ou especiais, não teriam sobrevivido. Queremos mostrar que, além do sofrimento, ainda há vida e um caminho bonito para trilhar", reforça.
Impactos
Marcus lembra que o abuso infantil pode ser processado de diferentes maneiras, de modo que não é possível determinar exatamente como ele afetará a vida da pessoa. No entanto, salienta, é inegável que crianças e adolescentes vítimas de violência sexual muitas vezes têm o seu desenvolvimento psíquico comprometido.
As pesquisas na área da psicologia apontam que, durante a infância e a adolescência, é comum que as vítimas de abuso apresentem mudanças na autoestima, além de comportamentos agressivos e autodestrutivos. "Também costumam perder o interesse pelo brincar e pelos estudos, ficam mais isoladas e têm mais dificuldades para se concentrar. Outros desvios de conduta, como mentiras, roubos, uso de violência, consumo de substâncias, fugas de casa e mesmo ideações suicidas, também podem acontecer", aponta Marcus.
A principal consequência desse trauma se manifesta a partir do aparecimento de transtornos mentais, como a ansiedade, a depressão, e a presença de comportamentos autodestrutivos. "O transtorno de estresse pós-traumático, por exemplo, costuma ser desenvolvido por cerca de 57% das vítimas e 80% têm ansiedade e depressão graves", informa.
Tratamento
"O tratamento da vítima de violência sexual na infância dependerá das consequências que o abuso trará para essa pessoa. Em geral, no entanto, a psicoterapia e o acompanhamento psiquiátrico são recomendados. Em alguns casos, pode ser necessário o uso de medicamentos para ansiedade, depressão ou outros transtornos psíquicos. A automedicação, porém, não deve ser realizada. A melhor opção é procurar ajuda profissional."
Além dos tratamentos convencionais para pessoas que sofreram abuso infantil, a adoção de algumas práticas é recomendada para mitigar os efeitos dessa violência, complementa Marcus. É interessante fazer atividades físicas (ajuda a controlar transtornos como a ansiedade e a depressão, estimula a liberação de hormônios que aumentam a sensação de bem-estar e é uma aliada na recuperação da autoestima), ter uma rotina equilibrada, manter a mente ocupada e construir um cotidiano saudável.
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"Não queremos dizer que o ideal é estar sempre trabalhando ou estudando, e sim que desenvolver um hobby é essencial. Ler, jogar videogames, escrever, sair com os amigos, praticar um esporte, dançar, tricotar… A lista é imensa, e ter uma válvula de escape saudável que te deixe mais feliz e relaxado pode fazer toda a diferença, sobretudo nos dias mais difíceis", diz Marcus.
O acompanhamento com um profissional de psicoterapia é fundamental para adultos que lidaram com a violência sexual durante a infância. E, em momentos de crise, conhecer algumas técnicas de relaxamento já pode ajudar a pessoa a ficar mais calma e atravessar as situações com mais segurança, recomenda.
Prevenção
Marcus aponta algumas medidas de prevenção que podem e devem ser tomadas para evitar que o abuso aconteça. A principal delas é estimular a conversa sobre esse assunto com crianças e adolescentes. Familiares, educadores e pessoas que costumam conviver com eles podem adotar estratégias distintas para abordar o tema. "Desde livros, vídeos educativos e matérias de jornal (no caso de crianças) até o debate aberto sobre o tema (no caso de adolescentes), o mais relevante é ressaltar a importância da denúncia e reforçar que a criança/o adolescente, não têm culpa."
Ele lembra que, embora o maior número de casos de abuso aconteça com meninas e mulheres jovens, o abuso infantil em meninos também existe e deve ser combatido. As vítimas masculinas têm mais dificuldades para falar sobre a violência sofrida — uma consequência direta do machismo e dos estereótipos de masculinidade, avalia Marcus — e, por isso, é fundamental estimular o diálogo e fazer com que eles também se sintam seguros e confortáveis para conversar com outras pessoas.
Para amenizar a dor
O Mais Alívio nasceu em novembro de 2023 com o objetivo de ser mais que um aplicativo, mas sim um programa de suporte a pacientes e familiares. Entre as crianças, muitos dos casos atendidos são de epilepsia e autismo e, considerando pessoas mais velhas, pacientes com Alzheimer, Parkinson, ansiedade e depressão, por exemplo.
Geralmente são pacientes polimedicados que precisam de mais de um profissional médico para seu cuidado de saúde. "É olhar o paciente e as dificuldades que ele a família passam no dia a dia, orientando sobre administração de medicamentos, interação medicamentosa, como entender o diagnóstico, o que é, o que causa, como evitar, oferecer suporte em todas as etapas do tratamento, acompanhamento farmacológico. Cuidados com a saúde em geral", diz Marcus, reforçando que a informação e a tecnologia são ferramentas fundamentais nesse sentido.
Muitas vezes também são tratamentos caros, e, por isso, a plataforma firma convênio com indústrias farmacêuticas e empresas de saúde para torná-los mais acessíveis, por meio de um programa de benefícios. O Mais Alívio conta com uma equipe multidisciplinar de 15 profissionais, incluindo médicos generalistas e psiquiatras, com atendimentos online, baixando o aplicativo ou acessando o site maisalivio.com, que direciona para canais de suporte, como o WhatsApp.