A obesidade é uma doença crônica que afeta mais de 1 bilhão de pessoas, segundo levantamento global divulgado em fevereiro na revista The Lancet. Mas ainda é senso comum a ideia de que a condição está relacionada simplesmente aos hábitos de comer muito e se exercitar pouco.
Esse pensamento simplista — presente em diversos setores da sociedade, inclusive na saúde — tem sido apontado por especialistas como prejudicial para a compreensão da complexidade metabólica da doença. Além disso, influencia negativamente as decisões das autoridades de saúde, dificulta a busca por ajuda médica e perpetua estigmas e preconceitos.
No Brasil, a obesidade afeta um a cada quatro adultos, segundo o Ministério da Saúde. Com a atual taxa de crescimento, estima-se que quase metade (48%) da população brasileira será diagnosticada com a doença até 2044, de acordo análise da Fiocruz Brasília apresentada em junho.
Apesar dos números alarmantes, o estudo aprofundado da obesidade é recente — começou há menos de uma década. Contudo, mesmo diante de evidências cada vez maiores de que essa é uma condição multifatorial, ainda impera a visão de que é algo fácil de ser tratado ou evitado.
“Rebranding” da obesidade
Daí porque profissionais da saúde têm defendido um rebranding da obesidade. O termo, emprestado do marketing, significa pensar em uma nova “cara” para uma marca — alterando elementos visuais e de posicionamento, por exemplo.
“Discutir o rebranding da obesidade é, em última análise, discutir sobre pessoas. Muitos veem a doença como simples falta de força de vontade, excesso de alimentação e falta de exercício. Isso não apenas é incorreto, como também é um discurso ultrapassado”, afirmou o médico nutrólogo Guilherme Giorelli, professor da pós-graduação de nutrologia do Hospital Israelita Albert Einstein, durante apresentação no 9º Fórum Latino-Americano de Qualidade e Segurança na Saúde, realizado em São Paulo de 9 a 11 de julho.
Para Guilherme, o fato de essas discussões serem recentes, de certa forma, contribui para a falta de uma identidade clara e definida para a obesidade ainda hoje. Isso significa que, mesmo tendo critérios para ser considerada uma doença, como patofisiologia e mecanismos etiológicos bem definidos, na maioria das vezes, ela é reconhecida apenas como um “fator de risco” devido a sua possibilidade de desencadear outros tipos de doenças, como hipertensão e diabetes.
A contradição mora no fato de que o mesmo não acontece com outros problemas de saúde, como o próprio diabetes e a depressão, que recebem a definição de “doença” a partir dos mesmos critérios estabelecidos. De acordo com uma pesquisa de 2019 do National Institutes of Health (NIH), dos Estados Unidos, 32% das pessoas não consideram a obesidade como uma doença crônica. Entre os profissionais de saúde, essa porcentagem é de 12%.
Em entrevista à Agência Einstein, Guilherme destaca que essa ausência de uma identidade bem definida, além de ressaltar a necessidade de estratégias eficazes de comunicação, colabora para que as complexidades biológicas da doença sejam facilmente ignoradas e que conceitos equivocados se perpetuem. “Aquela frase ‘você é o que você come’ é um grande erro científico, porque se duas pessoas comerem a mesma coisa ou fizerem o mesmo exercício o resultado nunca vai ser idêntico", diz o nutrólogo do Einstein.
Para o endocrinologista Bruno Halpern, presidente da Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e Síndrome Metabólica (Abeso), é essencial compreender que as causas da obesidade são diversas. Embora o excesso de calorias aumente o risco populacional de obesidade, estima-se que 70% da doença corresponda a uma carga genética, o que torna estratégias que se baseiam apenas em “coma menos, mova-se mais” — embora importantes para qualquer pessoa — ineficazes para alguns diagnosticados com a condição.
Isso significa que, assim como a doença se manifesta de maneiras variadas, o tratamento também precisa levar em consideração as individualidades de cada um. Isso pode incluir, além de uma boa dieta e exercícios, intervenções como medicamentos e até mesmo cirurgias.
Outro ponto é que muitos mecanismos relacionados à obesidade acontecem no cérebro, influenciando o consumo alimentar. Por exemplo: o hipotálamo, região cerebral que controla a fome, a sede, a temperatura corporal e a respiração, regula o peso corporal de forma a defender o peso máximo alcançado. “Ou seja, quando uma pessoa come menos calorias ou aumenta a atividade física, o gasto metabólico diminui e a fome aumenta em uma tentativa do corpo para retornar ao peso ‘original’”, explica Bruno.
Além disso, fatores externos, como medicamentos, disruptores endócrinos, poluição atmosférica e sono ruim, também podem contribuir para o desbalanço energético que leva à obesidade.
Da culpabilização à ausência de políticas públicas
Um dos grandes riscos da visão simplista de que a obesidade é resultado apenas de “comer muito e se exercitar pouco” é que as pessoas com essa condição se culpam, como se nunca estivessem fazendo o suficiente, e podem demorar a buscar ajuda. “As pessoas geralmente pensam que é simples: 'basta querer, comer menos e se exercitar mais'. Isso as faz acreditar que não precisam de ajuda profissional e que podem resolver tudo sozinhas”, observa Bruno. “Se procuram um profissional que reforça essa ideia, acabam acreditando que é fácil. Quando não conseguem alcançar o que pretendiam, sentem que há algo errado com elas.”
Hoje, há de se considerar também a forte influência de redes sociais e influenciadores que, ao basear seus discursos em um conhecimento raso sobre a doença, contribuem para que os pacientes se coloquem nesse lugar de culpados. “A pessoa se vê como incapaz, se questionando ‘por que todo mundo consegue e eu não?’. Isso acaba, inclusive, sendo um fator de risco para transtornos mentais, como a depressão”, alerta o presidente da Abeso.
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A endocrinologista Maria Edna de Melo, chefe da Liga de Obesidade Infantil do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP), destaca que a perpetuação de discursos equivocados sobre a obesidade pode até colaborar para que a doença progrida. Isso porque as pessoas ficam mais suscetíveis a estresse, depressão e, consequentemente, a quadros de compulsão alimentar. “Quando estamos estressados, nossa biologia nos induz ao consumo de alimentos mais palatáveis, que geralmente têm mais açúcar, gordura e/ou sal, resultando no hiperconsumo de calorias, o que agrava o quadro de obesidade”, destaca Melo.
Outro ponto importante é que esses indivíduos também podem se sentir desencorajados a buscar ajuda profissional, acreditando que resolver o problema é uma questão simples e individual e dispensando tratamentos como medicação, cirurgia ou suporte nutricional. “Isso é especialmente prejudicial para aqueles mais gravemente afetados pela obesidade, que enfrentam maior estigma e preconceito, situações ainda mais prejudiciais durante a infância e adolescência”, ressalta a endocrinologista.
As consequências também se refletem na formulação de políticas de saúde, já que há um desconhecimento sobre a condição entre profissionais e gestores da área. “Isso mostra que nós temos, antes de tudo, que melhorar a capacitação. Antes de falarmos sobre epidemiologia, como controle e prevenção, precisamos discutir sobre os aspectos biológicos da doença e como eles exigem que cada paciente possua um tratamento personalizado”, recomenda Maria Edna.
Na visão de Bruno, associar a obesidade apenas a escolhas individuais também funciona como uma desculpa conveniente para a falta de formulação de políticas públicas eficazes. "Ao atribuir a doença exclusivamente às decisões pessoais, fica subentendido, tanto para o sistema quanto para a sociedade e as indústrias, que não é necessário estabelecer políticas de prevenção e tratamento; afinal, basta que cada um faça a sua parte”, avalia. “Justamente por isso, inverter essa conversa é importante, porque do jeito que está, é conveniente para a inação.”