A primeira transmissão de mpox em humanos foi registrada em 1970, décadas antes do surgimento do SARS-CoV-2, vírus causador da covid-19. No entanto, desde 12 de outubro de 2024, publicações visualizadas mais de 18 mil vezes nas redes sociais afirmam que a mpox é um "efeito colateral" das vacinas anticovid, e que a Organização Mundial da Saúde (OMS) teria "admitido" isso.
A entidade explicou à AFP que essas publicações distorcem dados da sua plataforma, que não estabelecem "nenhuma ligação confirmada entre um medicamento e um efeito colateral".
"Em uma descoberta surpreendente, a Organização Mundial da Saúde (OMS) admitiu que a ‘varíola dos macacos’ é, na verdade, um ‘efeito colateral’ das V@cs C_19", afirmam publicações no Instagram, no Telegram e no X.O conteúdo também circula em espanhol, francês,alemão e holandês.
Em 14 de agosto de 2024, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou uma emergência de saúde pública internacional devido ao surto de mpox, uma doença infecciosa anteriormente conhecida como "varíola dos macacos", causada por um vírus da família poxviridae, que inclui a varíola comum.
Segundo a OMS, a mpox foi detectada pela primeira vez em humanos em 1970 e circulou principalmente em países da África Central e Ocidental. Pode ser transmitida de pessoa para pessoa por contato próximo e, ocasionalmente, de animais para humanos.
Entre 2022 e 2023, a doença se espalhou pelo mundo. De acordo com a OMS, os sintomas da enfermidade, como febre ou erupções cutâneas, geralmente desaparecem por conta própria após algumas semanas e as mortes são raras.
Interpretação falaciosa de dados de farmacovigilância
As publicações virais compartilham a alegação junto a um artigo publicado na plataforma Substack e traduzido de um texto em inglês do site Slay News, cujo conteúdo foi verificado pela AFP em outras ocasiões (1,2).
O texto afirma que a suposta declaração da OMS sobre a mpox "está escondida no site VigiAccess" da instituição, que reúne possíveis efeitos colaterais reportados após o uso de determinados medicamentos.
Na página inicial do site, lê-se que o"VigiAccess foi criado para servir como um ponto de partida útil para aqueles que desejam compreender mais sobre os tipos de efeitos colaterais potenciais que foram reportados após o uso de medicamentos".
Também é especificado que a informação disponível"refere-se a efeitos colaterais potenciais; ou seja, sintomas e outras situações observadas após o uso de um medicamento, mas que podem ou não estar relacionados ou ter sido causados por esse produto".
Por isso, o site ressalta que as informações do VigiAccess"não devem ser interpretadas como a indicação de que um medicamento ou qualquer uma das suas substâncias ativas tenham causado o efeito observado ou sejam perigosos", uma vez que"a confirmação de um nexo de causalidade é um processo complexo que requer uma avaliação científica rigorosa e uma revisão detalhada de todos os dados disponíveis".
"As informações neste site, portanto, não refletem nenhuma ligação confirmada entre um medicamento e um efeito colateral", detalha a página.
O artigo do Slay News citado pelas publicações virais não especifica nenhum dos itens acima e apenas indica que o VigiAccess"possui um banco de dados que lista todos os efeitos colaterais conhecidos de todos os medicamentos e vacinas aprovados para uso público"e que entre"os 'possíveis efeitos colaterais' da vacina Pfizer-BioNTech contra a covid-19, a OMS inclui a ‘varíola dos macacos’, a ‘varíola’ e a ‘varíola bovina’, entre centenas de outros distúrbios".
O artigo exibe uma captura de tela do site da OMS, onde aparecem diversas condições na categoria"Infecções e infestações", incluindo seis de "monkeypox" (nome anterior em inglês da mpox).
Uma busca no banco de dados da vacina Pfizer contra a covid-19 mostrou que, até 30 de outubro de 2024, houve 5.765.390 relatos de possíveis efeitos colaterais.
A categoria"Distúrbios gerais e efeitos colaterais no local de administração"é a que mais relata possíveis efeitos, 26% do total. Ela lista eventos como pirexia, ou seja, febre (1.029.450 casos notificados), fadiga (841.360 casos notificados), calafrios (604.663 casos notificados), mal-estar geral (412.122 casos notificados) ou dor no local da injeção (403.619 casos notificados), entre outros.
A categoria"Infecções e infestações"representa 5% dos potenciais efeitos colaterais relatados. Lá, entre uma longa lista de infecções, estão os seis casos relatados de mpox.
Além de essa base de dados não listar efeitos colaterais comprovados, seis notificações de casos potenciais em mais de 5,7 milhões representam 0,00012%: um número insignificante.
As alegações do artigo são"invenções infundadas", disse um porta-voz da OMS à AFP em 16 de outubro de 2024, lembrando que"a palavra ‘potencial’ significa que os efeitos colaterais mencionados podem ocorrer, mas não necessariamente aparecem"e que"a palavra ‘relatado’ também é importante aqui", já que os dados visíveis no VigiAccess são baseados em relatórios nacionais de farmacovigilância.
Por outro lado, os centros de farmacovigilância de cada país utilizam metodologias diferentes para coletar dados, e alguns baseiam-se em relatórios derivados de declarações individuais, que podem estar sujeitas a distorções.
A AFP já verificou alegações enganosas semelhantes sobre outras bases de dados de farmacovigilância (1,2).
Afirmações enganosas compartilhadas antes
O artigo compartilhado pelas publicações virais afirma ainda que a ligação entre a vacina anticovid e a mpox já tinha sido"revelada"por Wolfgang Wodarg –verificadopela AFP anteriormente.
Em um vídeo que se tornou viral em agosto de 2024, Wodarg afirmava que a mpox é, na verdade,"herpes-zóster"e também um"efeito colateral das vacinas contra a covid-19".
No entanto, a mpox não tem relação com o herpes-zóster, uma vez que os vírus são completamente diferentes, como explicaram vários especialistas à AFP emagosto de 2024ejunho de 2022.
Além disso, a ligação que Wodarg faz entre o herpes-zóster e a vacina anticovid não está comprovada, como observou a Agência Nacional de Segurança de Medicamentos francesa (ANSM, na sigla em francês) em 2023:"A autoridade europeia não identificou uma ligação entre o aparecimento deste evento[N. do E., herpes-zóster] e a vacina".
Um artigo do Journal International de Médecine, publicado em janeiro de 2024, também conclui que, embora alguns estudos tenham encontrado um risco aumentado de reativação do herpes-zóster após a vacinação contra a covid, outras investigações não observaram o mesmo fenômeno.
A mpox surgiu décadas antes da crise sanitária ligada à covid-19. A AFP já verificou versões infundadas que tentam relacionar a doença e as vacinas contra o SARS-CoV-2 (1,2).