De roupão azul, Maguila leva a mão direita na direção da lente da câmera -  (crédito: Reprodução/Instagram/Maguila)

De roupão azul, Maguila leva a mão direita na direção da lente da câmera

crédito: Reprodução/Instagram/Maguila

BOGOTÁ, COLÔMBIA (FOLHAPRESS) - A última ação da vida ilustre de Adilson "Maguila" Rodrigues, morto no último dia 24, aos 66 anos, foi doar o próprio cérebro para pesquisas sobre encéfalopatia traumática crônica. Mas quão fácil é fazer esse tipo de doação? Bom, caso você esteja pensando em algo parecido, por mais interessante que seja a possibilidade, não espere que seja algo simples.

 

O cérebro do ex-boxeador agora está no Biobanco para Estudos em Envelhecimento Cerebral da USP, ou, em uma versão mais curta, biobanco de cérebros da USP.

 

 

O biobanco existe desde 2004 e tem cerca de 4.000 cérebros guardados.

 

Você está imaginando prateleiras carregadas de jarros contendo cérebros flutuando em líquido? Essa imagem não poderia ser mais distante da realidade.

 

O arquivo, na verdade, é composto de grandes gaveteiros nos quais são armazenados diversas pequenas fatias de cérebros. São esses pedacinhos que servem de objeto para pesquisas presentes e futuras.

 

 

Os cérebros do biobanco chegam até ali pelo Serviço de Verificação de Óbitos (SVO), que fica no prédio da Faculdade de Medicina da USP, em Pinheiros, na zona oeste de São Paulo. "O pessoal confunde com o IML [Instituto Médico-Legal]", diz Renata Leite, coordenadora do biobanco da USP.

 

Ela explica que seguem para o SVO os casos de morte por causas naturais, enquanto o IML, em linhas gerais, trata de mortes violentas.

 

Segundo a coordenadora, chegam ao serviço 14 mil óbitos por ano. É dentro desse universo que os pesquisadores do biobanco trabalham. Dependendo dos casos que chegam ao local para autópsia, eles abordam a família e explicam como funciona o projeto e para que podem ser usados os cérebros doados.

 

Em média, Leite diz que cerca de 60% das famílias abordadas concordam em fazer a doação. "O brasileiro é muito aberto à doação do cérebro para a ciência", afirma a especialista, comparando o dado ao de outros biobancos pelo mundo que realizam abordagens semelhantes. "É um momento de dor, é um momento muito difícil. Eu acho muito bonita essa propensão que as famílias têm de querer contribuir para a ciência."

 

 

A coordenadora afirma que, normalmente, as famílias que não aceitam se baseiam em motivos religiosos ou não sabem qual era a vontade da pessoa que morreu em relação ao tema.

 

No caso das que aceitam fazer a doação, os pesquisadores disponibilizam os resultados das análises conduzidas no cérebro do ente querido. "Mas a maioria não nos procura para o laudo. O que elas querem mesmo é colaborar com a ciência e ajudar o próximo", diz Leite.

 

O procedimento mostra, então, que não basta simplesmente uma pessoa querer que o seu cérebro seja doado -e o biobanco é procurado para tal, segundo Leite. Pelo menos, essa é a realidade atual.

 

Para o futuro, o projeto quer abrir essa possibilidade. O que impede que isso seja feito agora é a necessidade de ter uma equipe sempre presente para receber as doações e, mais importante ainda, para conversar com a família do doador.

 

 

"A gente quer atender essas famílias da melhor maneira possível", diz Leite. "Precisamos ter uma equipe que seja capaz de atender o telefone, que seja capaz de chegar aqui antes da família, para que possamos acolhê-la muito bem nesse momento. Então, precisamos ter uma logística muito boa. Envolveria uma equipe muito grande e, consequentemente, um investimento financeiro muito grande."

 

E o Maguila?

 

Se não é possível fazer ativamente uma doação, como o Maguila conseguiu doar o cérebro dele?

 

O interesse do lendário boxeador peso-pesado brasileiro no assunto começou quando Hilderaldo Bellini, zagueiro e ex-capitão da Seleção Brasileira de futebol, doou seu cérebro para o biobanco da USP.

 

"Ele [Maguila] era muito antenado nas coisas. Eu me lembro como ele teve uma surpresa positiva quando o Bellini doou o cérebro dele", diz Renato Anghinah, médico e professor em neurologia na USP. "Ele ficou bem impressionado pela generosidade da família. Foi a primeira vez que ele expressou que gostaria de doar o cérebro."

 

 

Maguila procurou médico graças a outro ex-boxeador. Éder Jofre recebera diagnóstico de doença de Alzheimer e, segundo Anghinah, ao chegar às suas mãos estava em uma situação complicada. O médico da USP, porém, levantou outra hipótese para os sintomas: encéfalopatia traumática crônica, condição causada por choques frequentes na cabeça.

 

A mudança de diagnóstico e de tratamento resultou em melhoras para Jofre, de acordo com Anghinah. Começaram, então, a surgir pedidos para que o médico visse Maguila.

 

Nessa época, Maguila tinha, há mais de uma década, o diagnóstico de Alzheimer e estava em uma situação delicada. "Já estava bem debilitado, com sonda no estômago. Não deglutia, estava sem apetite. Estava definhando", lembra Anghinah.

 

O especialista, então, após ser procurado pela família, passou a atender o peso-pesado e também concluiu que o quadro dele era de encéfalopatia traumática crônica. Com a mudança de diagnóstico e tratamento, o estado de saúde de Maguila melhorou.

 

 

Segund Anghinah, cerca de 15 dias após a mudança de tratamento, Maguila já estava deglutindo. E, ainda de acordo com o médico, se havia uma coisa de que o paciente gostava, era de comer. O ex-boxeador teria dito que, assim que recebesse a liberação médica, iria comer uma feijoada. E, assim o fez, logo que pôde.

 

Por fim, a doação do cérebro de Maguila foi possível porque Anghinah tem pesquisas em andamento sobre encéfalopatia traumática crônica junto ao biobanco. Foi dessa forma, também, que o cérebro de Jofre acabou no biobanco da USP.

 

O professor da USP conta ainda que Maguila se disse decepcionado com a não doação do cérebro de Muhammad Ali, que foi diagnosticado com a doença de Parkinson.

 

Anghinah destaca que a encéfalopatia traumática crônica não ocorre somente em esportistas que sofrem com golpes na cabeça. Ele diz, por exemplo, atender até mesmo vítimas de violência doméstica que desenvolveram o problema.

 

O especialista reforça que é importante não só doar órgãos para pesquisa, mas também para salvar pessoas que precisam de transplantes.

 

Outras pesquisas

 

 

Além da pesquisa sobre encéfalopatia traumática crônica, há diversos projetos de pesquisa associados ao biobanco de cérebros da USP, especialmente estudos relacionados ao envelhecimento.

 

Um dos projetos atualmente em curso olha para os cérebros de pessoas com mais de 90 anos que tinham cognição e nível de atividade bons. Outro, para os cérebros de pessoas de 18 a 65 anos, para tentar ver possíveis sinais de Alzheimer.

 

Personalidades esportivas que doaram o cérebro à USP

 

Adilson "Maguila" Rodrigues

 

Morte: 24 de outubro de 2024 (66 anos)

 

Profissão: Boxeador peso-pesado

 

Carreira:

 

77 vitórias (61 por nocaute) 7 derrotas (7 por nocaute) 1 empate

 

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Hilderaldo Bellini

 

Morte: 20 de março de 2014 (83 anos)

 

Profissão: Jogador de futebol

 

Carreira:

 

Capitão da seleção brasileira campeã mundial em 1958 Reserva da equipe que conquistou a Copa de 1962 Ícone do Vasco da Gama Tido como o primeiro a fazer o gesto de levantar a taça de campeão da Copa

 

 

 

Éder Jofre

 

Morte: 2 de outubro de 2022 (86 anos)

 

Profissão: Boxeador pesos galo e pena

 

Carreira:

 

72 vitórias (50 por nocaute) 2 derrotas 4 empates