Roseli Andrion | Pesquisa para Inovação – Todos os anos, cerca de 2,5 milhões de bebês nascem no Brasil. Cada um deles é submetido à triagem neonatal - o conhecido teste do pezinho - disponível no país desde os anos 1970 e obrigatória desde 1992. Rápido, pouco invasivo e praticamente indolor para o recém-nascido, o teste é oferecido nas redes pública e privada de saúde. Sem o resultado dele, não é possível nem registrar o bebê em cartório.
O sangue coletado no calcanhar do recém-nascido permite detectar mais de 50 doenças — embora a maioria das localidades brasileiras ainda ofereça apenas a opção que identifica somente seis enfermidades. Uma lei sancionada em 2021 determina que, até 2026, todos os serviços disponíveis no país ofereçam a alternativa mais completa.
Com apoio do Programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (PIPE), da FAPESP, a startup paulista Immunogenic desenvolveu um teste que reconhece mais de 50 imunodeficiências. O estudo para criar uma alternativa nacional de triagem neonatal ampliada teve início em 2009, no Centro Jeffrey Modell do Brasil, e envolveu a validação em milhares de amostras. “O objetivo é identificar imunodeficiências raras”, diz Antonio Condino-Neto, professor do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (ICB-USP) e diretor médico da healthtech.
O imunologista aponta que o avanço da tecnologia fez surgirem terapias para doenças raras que eram negligenciadas. “Só faz sentido identificá-las na triagem neonatal se houver tratamento para elas: você cria essa opção se a doença tem incidência relevante na população e se há tratamento”, explica. “É para situações que exigem diagnóstico precoce porque não adianta diagnosticar tardiamente, quando elas já aconteceram.”
As imunodeficiências, por exemplo, preenchem todos esses quesitos. Em qualquer desses casos, quanto antes diagnosticar, melhor. “Para a imunodeficiência grave combinada [Severe Combined Immunodeficiency – SCID], o ideal é diagnosticar no primeiro mês de vida para fazer a genotipagem e programar o transplante de células-tronco até os três meses de idade”, afirma Antonio Condino-Neto.
Segundo o pesquisador, existem cerca de 20 formas de SCID — todas elas detectadas pelo teste do pezinho criado pela Immunogenic. “Um bebê com agamaglobulinemia tem falta de linfócito B. Ele nasce com anticorpos recebidos da mãe durante a gestação, mas pelo sexto mês já não os tem mais e não consegue produzir outros. O diagnóstico precoce impede que a criança venha a óbito antes de completar um ano de vida. A reposição de imunoglobulinas é coberta pelo Sistema Único de Saúde [SUS], assim como os demais tratamentos para imunodeficiências.”
Atualmente, a triagem para a identificação dessas doenças é feita com testes importados. Os cientistas da Immunogenic, então, desenvolveram uma solução nacional a partir de pesquisas acadêmicas. “Como isso tem aplicação direta na atenção ao indivíduo, criamos a Immunogenic, porque não seria possível continuar em um laboratório acadêmico”, pontua Antonio Condino-Neto. “A startup é quase uma cópia do laboratório de imunologia humana do ICB-USP, mas oferece produtos para o mercado”, compara.
Busca por parceiros
Segundo o pesquisador, o teste da Immunogenic já é usado pela Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae) de São Paulo, atualmente denominada Instituto Jô Clemente. Na capital paulista, existe lei para a realização da triagem ampliada desde 2020. “Em dois anos, com uma média de oito mil a 10 mil testes por mês, diagnosticamos oito casos de SCID: dois de agamaglobulinemia congênita e o primeiro de leucemia congênita do mundo”, detalha. “Estatisticamente, identificamos o dobro do esperado. Isso deixa a gente bastante entusiasmado.”
A próxima etapa será registrar o teste na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e encontrar parceiros para fabricá-lo. “Um kit nacional tem a vantagem de ser mais barato e de ter 15 anos de pesquisa e calibração da sensibilidade [o que se detecta] e da especificidade [o diagnóstico da doença em si, não de um falso positivo] para o DNA brasileiro.”
Ele aponta que as opções importadas não identificam tudo o que a nacional reconhece. “São bons testes, mas nós estamos calibrando há 15 anos no DNA brasileiro, que é diferente de DNAs de outros países”, reforça. “Nosso kit diagnostica, inclusive, a atrofia muscular espinhal [AME].”
Antonio Condino-Neto diz que, no momento, a equipe faz um estudo do teste concorrente. “Uma coisa é a informação de catálogo, outra é a vida real.” Além disso, para que a triagem neonatal seja efetiva, é preciso padronizar o processo em milhares de amostras. “O teste importado vem com as instruções para que o usuário faça sua própria curva de normalidade. Nós, como fazemos isso há 15 anos, fornecemos parâmetros mais precisos. Mesmo assim, cada Estado brasileiro vai ter referências diferentes e, se mudar a plataforma, é preciso refazer tudo.”
Além disso, o teste nacional tem outra vantagem: enquanto os concorrentes oferecem equipamentos próprios para o processamento das amostras para quem compra os kits, a alternativa brasileira é compatível com qualquer equipamento de biologia molecular. “É um teste que tem a flexibilidade de poder ser usado em qualquer lugar do mundo.”
Nesse aspecto, a Immunogenic já busca interessados em comprar os kits brasileiros em outros países. “As negociações para vender nosso teste em outros mercados já estão em fase adiantada. A opção poderá ser usada na Europa, nos Estados Unidos, na África, na Ásia, na Oceania, ou seja, em qualquer lugar. Em outros países, eles terão de reconfirmar nossa referência com as amostras deles, mas isso não é uma desvantagem, já que a solução é mais flexível em relação à plataforma de processamento. Sem contar que o preço deve ser metade ou menos do que a concorrência.”
Por enquanto, ainda são poucos os locais que oferecem a triagem neonatal ampliada sem custo extra. “Bebês que nascem em serviços públicos no município de São Paulo já têm isso assegurado. No interior do Estado de São Paulo e em outras localidades, é preciso confirmar se a opção está disponível. Como ainda não está no rol da Agência Nacional de Saúde Suplementar [ANS], não é coberto pelos planos de saúde.”
O pesquisador destaca que a conscientização sobre o tema e a participação popular na cobrança por providências são fundamentais para que a triagem neonatal ampliada seja incluída no rol da ANS. “Assim, a cobertura vai ser obrigatória nos planos de saúde. Eles representam mais ou menos 30% do mercado no Brasil. É um percentual relevante e pode ajudar a aliviar as contas do SUS.”
Para Antonio, o parto envolve necessidades da mãe e do bebê — e ambas devem ser satisfeitas. “É importante que a mãe possa dar à luz em condições saudáveis e sem complicações, e que o recém-nascido faça o teste completo de triagem neonatal. É isso que a gente quer.”
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