FDA não "admitiu" que vacinados contra a covid-19 têm risco de coágulos sanguíneos por 15 anos
As afirmações são infundadas: elas se baseiam em um documento de 2020 que não tem a ver com os imunizantes
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Siga noAs vacinas contra a covid-19 são frequentemente alvo de desinformação na internet. Nesse sentido, desde 26 de fevereiro de 2025, publicações compartilhadas centenas de vezes nas redes sociais alegam que a FDA, agência reguladora de alimentos e medicamentos dos Estados Unidos, "admitiu" que pessoas vacinadas contra o coronavírus correm risco de trombose "por 15 anos". Mas as afirmações são infundadas: elas se baseiam em um documento de 2020 que não tem a ver com os imunizantes. Além disso, é cientificamente impossível prever a trombose em um período tão longo, explicou um hematologista à AFP.
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Alguns conteúdos virais estão vinculados a um artigo do site Slaynews.com, que já publicou falsas alegações sobre vacinação anteriormente, e que também foram verificadas pela AFP (1,2).
Mas a alegação viral é falsa: além de não se referir a uma avaliação recente da agência norte-americana, sua única fonte é um estudo de caso de um paciente, que não menciona riscos "dentro de quinze anos", e foi publicado em uma revista "predatória" - que são aquelas com critérios editoriais e práticas duvidosas, até mesmo fraudulentas, motivadas pelos ganhos financeiros resultantes do pagamento pelos autores.
Um "estudo" duvidoso
O artigo do site começa citando um"estudo revisado por pares publicado no prestigiado ‘International Journal of Innovative Research in Medical Science’".
No entanto, o documento ao qual a matéria se refere não é um estudo de larga escala, mas, sim, um"estudo de caso"de um paciente com"hemorragia pulmonar fatal tardia após a vacinação contra a covid-19".
"Hoje em dia, na ciência o que mais usamos são estudos prospectivos ou ensaios randomizados, ou seja, estudos nos quais os pacientes são acompanhados de forma organizada. O 'estudo de caso' (conteúdo apresentado pela revista) é onde relatamos só um caso. Mas o que se prefere saber é se houve outros",o que não é indicado no material viral, explicou Nicolas Gendron, hematologista do Hospital Georges-Pompidou, à AFP em 7 de março.
Os autores do artigo já difundiram alegações enganosas relacionadas à vacinação anteriormente. Nicolas Hulscher foi o responsável por um artigo - publicado e depois retirado do ar por conta de críticas de pesquisadores à metodologia utilizada - sobre autópsias que supostamente mostravam mortes relacionadas a imunizantes contra a covid-19.
Hulscher também se apresenta em suas redes sociais como"administrador " da "fundação" de Peter McCullough, instituição que afirma"lutar pela liberdade médica por meio de dados e análises".
Já McCullough foi verificado pela AFP anteriormente por fazer afirmações infundadas sobre vacinas.
Além disso, o conteúdo viral apresenta a revista citada como"de prestígio", mas na verdade seu nome aparece em várias listas (1,2) de publicações predatórias que prestam pouca atenção ao conteúdo que publicam.
Esses tipos de revista são"um grande problema: elas enviam e-mails para médicos e pesquisadores todos os dias dizendo ‘caro professor, ficaríamos muito felizes se você publicasse conosco’, e publicam seus artigos sem muitos escrúpulos ou verificações, mas depois tiram dinheiro de você, então muitas pessoas, talvez em busca de fama, ficam felizes em ter seus artigos aceitos", afirma Gendron.
O tempo entre o recebimento do texto e sua publicação é curto, o que também desperta cautela. E o conteúdo do estudo de caso"não segue uma abordagem científica, não há rigor", acrescenta o hematologista.
"Há confusões entre trombose e hemorragia, menções a lotes de vacinas, mas, na verdade, é um truque antivacina analisar mortes associadas a lotes de vacinas, nunca trabalhamos dessa forma", explica Gendron, destacando também que a publicação"fala sobre tromboses ligadas às vacinas de RNA mensageiro[técnica usada para os imunizantes da Pfizer/BioNTech e Moderna],mas, se você olhar os links, só cita casos da AstraZeneca".
"É realmente um caso de manipulação de informações",conclui o hematologista.
Um documento antigo, que não fala de vacinas
O artigo da Slaynews alega citar um anúncio recente da FDA, a agência do governo dos Estados Unidos responsável por monitorar a segurança de medicamentos e alimentos.
Mas uma rápida olhada na primeira página do documento mencionado permite observar que ele não é atual, foi publicado em janeiro de 2020.
Além disso, o documento não menciona vacinas, mas sim"acompanhamento de longo prazo após a administração de produtos de terapia gênica humana".
Ao contrário de alegações que circulam desde o início da campanha de vacinação contra a covid-19, os imunizantes não são considerados terapias gênicas.
Em dezembro de 2021, pesquisadores do Instituto Nacional de Saúde e Pesquisa Médica da França (Inserm, na sigla em francês) publicaram um artigo explicativo sobre peças de desinformação que confundem RNA mensageiro e DNA.
"As vacinas de RNA mensageiro apenas fornecem informações às células para que elas possam codificar outra coisa temporariamente. Não se trata de terapia gênica, e dizer o contrário é manipular palavras", afirma Gendron.
A segunda página do documento informa explicitamente que ele não se refere a vacinas.
"Esta orientação não se aplica a vacinas indicadas para doenças infecciosas, produtos de bacteriófagos, produtos bioterapêuticos vivos, produtos de microbiota fecal para transplante (TMF) e produtos alergênicos", diz uma das notas de rodapé do documento em inglês.
Uma pesquisa avançada no Google com as palavras-chave "vacina" e "FDA" não derivou em nenhum comunicado recente da instituição mencionando um alerta sobre trombose.
Em 2025, o site do Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos (CDC) indicou que as vacinas contra a covid-19 e seus reforços ainda são recomendados para todas as pessoas a partir dos seis meses de vida.
Afirmações não científicas
As afirmações feitas no artigo não possuem fundamento científico, de acordo com Nicolas Gendron:"Cientificamente, para provar que os pacientes estão em risco por 15 anos, eles teriam que ser acompanhados por pelo menos 15 anos. Portanto, não podemos saber se esse risco é persistente, porque a vacinação começou em 2021. Só poderíamos falar de um risco de quatro anos".
"E o risco de coágulos sanguíneos em pacientes com deficiências genéticas com risco de trombofilia já é difícil de prever", acrescenta.
No artigo do Slaynews.com, essas alegações são seguidas por outras também infundadas, como a de que a FDA"admitiu"que as vacinas contra a covid-19 causaram um aumento no número de casos de câncer.
A AFP não encontrou menção a nenhum anúncio recente da agência norte-americana desse teor, e as alegações são baseadas em afirmações que já foram verificadas.
Essas alegações citam o"câncer turbo",um termo que não corresponde a nenhuma realidade científica, como especialistas já detalharam à AFP em 2023.
A pessoa apresentada no artigo como autora de pesquisas sobre o assunto também foi criticada por fazer alegações enganosas de que as vacinas de mRNA modificaram o genoma.
Trombose associada às vacinas da AstraZeneca e da Janssen
"Houve tromboses associadas à vacina da covid, mas essas não são vacinas de RNA mensageiro. São vacinas derivadas de adenovírus, incluindo as da AstraZeneca e da Janssen", ressalta Nicolas Gendron.
Esses casos são documentados por médicos e cientistas: "Essas tromboses estavam associadas a uma queda nas plaquetas sanguíneas. Quando havia essa suspeita, os médicos procuravam anticorpos anti-PF4. Se fossem positivos, levantava suspeita de VITT, trombose associada à vacina, esse é o termo médico, mas diz respeito apenas às vacinas de adenovírus",acrescenta Gendron.
Essas tromboses geralmente ocorrem nas primeiras semanas após a vacinação:"O que foi demonstrado é que elas ocorrem entre quatro dias e um mês após a vacinação, mas frequentemente nos primeiros 15 dias".
Sendo considerado raro, o risco foi identificado no início das campanhas de vacinação e levou a restrições à imunização com as vacinas em questão em vários países, inclusive no Brasil, na França e nos Estados Unidos.
De acordo com o site do Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos, cerca de "4 casos[de trombose]por um milhão de doses"foram identificados com a vacina Janssen da Johnson & Johnson, o que levou à decisão de recomendar vacinas de mRNA em seu lugar.
Nos medicamentos da AstraZeneca, os casos registrados também foram considerados"muito raros"pelas autoridades do Reino Unido, país que utilizou amplamente essa vacina, bem como por pesquisadores em estudos de larga escala como este, já em 2021.
Em maio de 2024, a AstraZeneca anunciou a retirada de sua vacina Vaxzevria do mercado por"razões comerciais".
Referência
Documento publicado pela FDA em 2020, com a ressalva de que não se refere a vacinas.