ENTREVISTA

Existe machismo em crianças? Psicóloga esclarece

Especialista fala sobre o comportamento na infância e na pré-adolescência diante de situações consideradas machistas

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Não é de hoje que situações de machismo se manifestam cotidianamente. Mas de onde elas surgem? O que pode ser feito para que essa cultura deixe de ser, de fato, uma cultura? Um dos caminhos é a educação, e muitos especialistas acreditam que isso deva começar dentro de casa.

Segundo a psicóloga clínica Cynthia Dias Pinto Coelho, é desde cedo que se formam os valores. Com vasta experiência em consultório, Cynthia atende crianças, adolescentes e adultos nas linhas de terapia sistêmica, familiar e cognitivo-comportamental.

Em entrevista ao Estado de Minas, a psicóloga fala sobre o comportamento de crianças e pré-adolescentes diante de situações consideradas machistas e orienta como os adultos podem abordar os pequenos acerca do tema.

psicologa e sexologa Cynthia Dias Pinto Coelho
Segundo Cynthia, as crianças devem aprender os conceitos de respeito, limites e empatia Alexandre Guzanshe/EM

Pode-se dizer que existe machismo em crianças? Se sim, como ele se manifesta?

O machismo pode existir em qualquer faixa etária e em qualquer gênero ou cultura. Ele vai depender do conjunto de valores que é praticado ou enaltecido no meio onde a criança vive e cresce, onde ela se forma como pessoa.

Existe o machismo explícito, fácil de se identificar, que é aquele que desqualifica a mulher com menosprezo e ofensas, mas também existe o machismo estrutural, que é aquele sutil, perpetuado de geração em geração, colocando a mulher numa posição inferior ao homem em qualquer ordem, com falas aparentemente inocentes, como por, “até que para uma mulher, você dirige bem” ou “você quer ser policial, menina? Essa profissão é muito pesada”. E, assim, a criança pode crescer repetindo esse modelo que valoriza mais o homem e diminui a mulher.

Se ela cresce num ambiente de violência doméstica, é fácil perceber o machismo porque a agressão verbal ou física é visível, mas se ela cresce num ambiente aparentemente saudável, mas machista, ela reproduzirá esse modelo de desqualificação feminina até sem perceber. Julgamentos em relação ao corpo da mulher e ao seu vestuário, em relação ao seu comportamento ao fazer atividades que eram, no passado, tipicamente masculinas, como se sentar num bar para beber e bater papo com as amigas, namorar sem o objetivo de se casar, estudar, ocupar cargos de chefia nas empresas, ter uma carreira política e comandar uma família são situações onde se pode observar o quão intensa é a manifestação do julgamento e do machismo estrutural em nossa sociedade.

Mas essas também podem ser oportunidades para a educação da criança e do adolescente, de uma forma mais justa e sensata, mostrando a eles que, independentemente do gênero, as pessoas são livres e têm os mesmos direitos e possibilidades na vida. Isso vale também para o combate ao preconceito em geral, pois pode-se ensinar o respeito ao próximo em todos os sentidos.

Além do machismo, que outros tipos de ofensas as crianças estão sujeitas a ver no ambiente escolar?

O ambiente escolar é um ambiente bastante diverso, reunindo crianças e adolescentes com realidades variadas e distintas. Ele pode ser visto como um ambiente rico para um aprendizado que vai muito além do acadêmico. Mas, ao mesmo tempo, pode oferecer situações delicadas e difíceis como a opressão e a violência manifestadas, por exemplo, através do bullying, que é a agressão física ou psicológica feita a alguém mais frágil por um aluno ou um grupo de alunos que se sentem superiores e mais fortes. As crianças e adolescentes com deficiência física, déficit cognitivo, neuroatípicos, negros e LGBTQIA+ costumam ser ofendidos e atacados com maior frequência.

As culturas familiares são de grande diversidade em relação à ética, moral, religiosidade, tipo de vocabulário e comportamento social. Assim, uma criança cuja família usa uma linguagem mais grosseira pode ofender um colega ao tratá-lo com palavrões e ofensas por achar que isso é “normal”.

Além disso, infelizmente, ainda acontecem episódios de machismo entre professores e alunas, que acabam sendo preteridas ou desqualificadas simplesmente pelo fato de serem meninas, podendo ser excluídas de um jogo de futebol ou de uma atividade escolar. Também existem casos de assédio sexual entre professores e alunos, que podem sofrer investidas sexuais e “piadinhas” de mau gosto, vindas daqueles que gozam de sua confiança como professor.

A partir de que idade as famílias devem começar a explicar para as crianças sobre o preconceito que ainda existe na sociedade?

O respeito por todos deve ser ensinado desde sempre. Crianças precisam de cuidados e orientações desde que nascem, pois são como um livro em branco cujos pais ou cuidadores são responsáveis pelo que será escrito ali inicialmente. Durante a formação, é possível mostrar a ela quais são os comportamentos considerados adequados e quais são os comportamentos inadequados. É possível explicar que nem todo mundo aprendeu a respeitar as outras pessoas e que, por esse motivo, podem agir de forma rude, mal educada, pretensiosa ou preconceituosa em relação às demais pessoas, e que esse tipo de atitude não é algo bacana.

A partir disso, é possível explicar sobre os tipos de preconceitos existentes como o machismo (mulheres), racismo (racial), homofobia (orientação sexual), neurodivergências (autismo, TDAH, déficit cognitivo), classismo (condição socioeconômica), xenofobia (contra estrangeiros), etarismo (idade), capacitismo (deficiência física), gordofobia (imagem corporal e obesidade), dentre outros. E ensiná-la que esses preconceitos são errados, que todas as pessoas merecem ser respeitadas e tratadas com educação e dignidade, que o respeito é um direito de todos.

E qual é a melhor forma de orientá-las a não agirem dessa maneira?

As crianças devem aprender desde cedo os conceitos do que é certo e do que é errado, de forma clara e objetiva. E elas também devem aprender os conceitos de respeito, limites e empatia. Ou seja, que não deve fazer com os outros aquilo que ela não gostaria que fizessem com ela, que o direito dela termina onde começa o do outro, que todos, sem exceção, devem ser tratados com educação e gentileza, que as diferenças pessoais devem ser respeitadas e que ninguém tem o direito de agredir ou ofender o outro, nem física nem verbalmente.

A família deve estar atenta ao fato de que a educação é consolidada a partir da repetição, ou seja, esses ensinamentos precisam ser repetidos inúmeras vezes para que sejam internalizados e realmente aprendidos. Os bons hábitos são formados ao longo do desenvolvimento da criança e elas devem estar sob o olhar atento e pedagógico de sua família para que cresçam saudáveis física e psicologicamente.

As crianças tendem a reproduzir atitudes que veem ao seu redor, seja dentro ou fora de casa. Quando há contato com pessoas de condutas diferentes, seja na escola ou em outros ambientes, elas podem ser influenciadas. Como formar um senso crítico, de forma que elas entendam que nem tudo que veem está certo?

Num primeiro momento, antes de desenvolverem um senso crítico próprio, as crianças agem por repetição, copiando aqueles que a rodeiam. Assim sendo, a melhor forma de educar é pelo exemplo, pois não adianta pregar uma coisa e praticar algo diferente daquilo que foi pregado. Por exemplo, você ensina a criança que ela não deve gritar com os outros, mas se você mesmo grita com ela ou com os demais, ela reproduzirá o seu comportamento a despeito de seus ensinamentos. Na infância, os pais, avós e cuidadores são as primeiras fontes de referência. Posteriormente, os professores e amigos se tornam modelos de exemplo também. Já na adolescência e início da idade adulta, o grupo de amigos se torna a influência mais marcante, juntamente com seus pares românticos e ídolos, como artistas, atletas e influencers.

Os bons valores devem ser ensinados à criança desde cedo, nas coisas mais simples do dia a dia, com regras básicas de educação, como cumprimentar todas as pessoas, usar diariamente as “três palavrinhas mágicas”: por favor, obrigado e me desculpe. A noção de limites deve ser ensinada e consolidada desde a infância, para que ela aprenda desde cedo que não pode fazer ou ter tudo o que quiser. Com uma base de educação sólida, ela ficará mais protegida de influências negativas ao longo de seu desenvolvimento.

Apesar disso, alguns comportamentos podem ser influenciados pelo grupo de convivência, e a família deverá estar atenta aos comportamentos adquiridos durante o seu crescimento. Ao perceber alguma conduta, fala ou pensamento inadequado, cabe aos pais, através do diálogo franco e aberto, ofertar novas orientações sobre as condutas adotadas, independentemente da idade dos filhos. Resumindo, a função de educar e orientar não termina até que o filho seja adulto.

O que dizer para a criança fazer, no caso de ela sofrer ou presenciar alguém sofrendo uma situação de machismo?

É importante ensinar a criança e ao adolescente a pedirem ajuda ao adulto confiável mais próximo deles no momento, ou seja, eles devem falar sobre o que aconteceu com seus pais, professores, coordenadores da escola, policiais, etc. Muitas pessoas vítimas de violência ficam constrangidas e envergonhadas diante de uma agressão de qualquer ordem e tendem a se calar, o que pode gerar traumas e sofrimentos ainda maiores.

O diálogo deve ser franco e aberto. A família deve ouvir a criança e o adolescente e acolhê-los dentro da sua dor, valorizando os seus sentimentos em relação àquele fato ocorrido. É importante conversar com eles sobre o que houve, explicando-lhes que coisas ruins acontecem e que a sua família está ali para protegê-los e ajudá-los. Além disso, é importante que sejam tomadas as medidas legais cabíveis ao caso, seja ela uma reunião com a diretoria da escola, seja um boletim de ocorrência junto às autoridades, se necessário.

Que postura os professores, coordenadores e outros educadores devem adotar para evitar esse tipo de comportamento entre as crianças e pré-adolescentes?

Ao presenciar situações como essas ou ao ouvir relatos de alunos que foram submetidos a situações de preconceito ou machismo, os professores podem e devem agir como agentes educadores. Atividades acadêmicas sobre o tema, trabalhos em grupo para apresentação em sala de aula podem ser elaborados com o objetivo de educar as crianças e adolescentes sobre a importância do respeito e o combate ao preconceito, ao machismo ou a qualquer tipo de ofensa.

Além disso, os alunos agressores devem ser chamados para reunião com a equipe pedagógica da escola, juntamente com seus pais, para que haja uma reflexão sobre sua atitude e para que a escola se posicione sobre a não aceitação desse tipo de comportamento no ambiente escolar em nenhuma hipótese. Ou seja, tolerância zero com ofensas, agressões e preconceitos somadas à educação sobre o tema. Deve-se levar em consideração que aquela criança ou adolescente que ofendeu ou agrediu alguém pode estar repetindo um comportamento inadequado que vivencia em sua casa, por exemplo, mas que essa pode ser uma chance de ela poder aprender na escola a agir de uma forma mais saudável e respeitosa com todos.

Como equilibrar a educação com firmeza e amor?

Já dizia o psiquiatra brasileiro Içami Tiba: “Quem ama, educa!”. Talvez o maior ato de amor dos pais pelos seus filhos seja educá-los com limites claros e boas noções de respeito ao próximo e a si mesmo. Essa é a base para uma vida saudável, equilibrada e feliz.

Infelizmente, alguns pais se perdem na criação dos filhos achando que, para ser feliz, a criança precisa ter tudo e fazer tudo o que quiser, mas isso é um engano. Uma boa saúde mental é construída com noções claras de certo e errado, com limites bem definidos, com a presença do “não” em sua vida. Isso pode e deve ser ensinado de forma amorosa, gentil e firme ao longo da vida da criança. Essas são as coisas que a ajudarão no futuro a viver em sociedade com a devida capacidade de lidar com a frustração e a ter a resiliência necessária para viver bem.

Ainda que os pais tentem dar tudo a uma criança, a vida não agirá assim. E a criança ou adolescente que não foi preparado para isso tende a ter baixíssima capacidade de lidar com a frustração e pouca capacidade de se reerguer após os fracassos e negativas inevitáveis da vida. Sem ter esse preparo, que deveria ter sido ensinado desde a infância, o psiquismo do adolescente tende a ser mais frágil e mais propenso aos transtornos psíquicos como ansiedade, depressão e até o risco de suicídio aumentado.

Educar e ensinar limites é algo que pode ser feito de forma amorosa, persistente e gentil. É um dever dos pais que querem preparar filhos maduros e funcionais para a vida adulta. Como diz o ditado, “Educar dá trabalho. Se você não está tendo trabalho, você não está educando direito”.

*Estagiária sob supervisão da editora Ellen Cristie.

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