O rápido avanço da inteligência artificial (AI) em todo o mundo está empurrando o Brasil para um ponto de não retorno: ou o país investe na qualificação de mão de obra, na regulação e em políticas públicas voltadas para a nova tecnologia ou corre o risco de perder o trem da história e ficar para trás em relação aos países que, hoje, são vanguarda nesse salto tecnológico. O risco é de “declínio tecnológico sem precedentes”, segundo alerta da Academia Brasileira de Ciências (ABC), em relatório divulgado na última quinta-feira.

“Sem investimentos adequados e políticas públicas duradouras e apropriadas, o quadro global de IA pode empurrar o Brasil para um declínio tecnológico sem precedentes. A lacuna entre os países que estão na vanguarda de PD&I (pesquisa, desenvolvimento e inovação) em IA e os demais países cresce a taxas exponenciais. É imperativo que o Brasil estabeleça políticas públicas e investimentos para reverter essa tendência sem demora. Se persistir a inércia, o impacto negativo será sentido a curto prazo na educação, nos demais índices sociais e na economia, com a consequente falta de competitividade empresarial em todas as áreas”, aponta a ABC.

O relatório “Recomendações para o avanço da inteligência artificial no Brasil” – elaborado por um grupo de cientistas – mapeou os principais gargalos que o desenvolvimento da inteligência artificial enfrenta no país. Um dos principais problemas apontados pelos pesquisadores está na formação de mão de obra qualificada. Enquanto em países mais desenvolvidos as universidades já contam com centros multidisciplinares de IA, aqui “a falta de conhecimento perpetuará uma dependência cada vez maior das grandes corporações e dos países dominantes da tecnologia”.

A inteligência artificial já é utilizada em múltiplas aplicações, uma ferramenta cada vez mais necessária não só para resolver problemas reais como para sustentar avanços nas mais diversas áreas do conhecimento. Para os pesquisadores, muitos setores da economia brasileira e serviços públicos serão fortemente beneficiados pela IA. Saúde, energia, sistema financeiro, biodiversidade e biotecnologia, agricultura, educação, competitividade empresarial, pesquisa científica e governança do setor público são alguns exemplos elencados pelo relatório.

“Quando você usa o Waze, o ChatGPT, o Instagram, os serviços bancários, todos usam algoritmos de IA. A indústria e os serviços também vão ser atraídos pelo aumento de produtividade proporcionado pela IA. No Brasil, essa discussão ainda é limitada, é preciso ter um debate público. Os investimentos são praticamente ausentes, quase não se vê”, disse o coordenador do relatório, o pesquisador do Departamento de Ciência da Computação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Virgílio Almeida.


Supervisão humana


Além da falta de investimentos, os pesquisadores alertam que a falta de regras claras para a IA é um grave fator de risco ao desenvolvimento da tecnologia, não só no Brasil, mas em todo o mundo. O Parlamento Europeu, por exemplo, trabalha para que a regulamentação dos sistemas de IA usados na Comunidade Europeia sejam seguros, transparentes, rastreáveis, não discriminatórios e sustentáveis. Por isso, apostam os cientistas, os sistemas baseados em IA vão requerer “supervisão humana”.

“Espera-se que nenhuma regulamentação possa limitar ou restringir a capacidade de desenvolvimento da ciência e da tecnologia brasileiras, e que seja possível inovar em ambientes controlados (sandboxes) de forma simples e com segurança jurídica”, diz o relatório.

Outro alerta diz respeito aos riscos do uso sem controle da IA à privacidade das pessoas e aos interesses da coletividade. Sem amarras éticas e legais, a nova tecnologia já produz danos como “violações de privacidade, criação de ambientes anticompetitivos, manipulação de comportamentos e ocorrência de desastres ambientais” – exemplos citados no relatório.

“A IA incorpora os problemas da sociedade, as desigualdades, as discriminações, os preconceitos. Esses algoritmos são controlados por quatro ou cinco grandes empresas, que concentram o poder de decisão sem nenhuma transparência. Os países precisam articular essa colaboração internacional”, sugere Virgílio Almeida.

Para ele, o Brasil precisa aproveitar o que chama de “grande tesouro”, que são os bancos de dados públicos do país. Mas esse ativo depende de regulação eficaz do uso da IA ancorada na legislação de proteção de dados. “São dados do Enem, do Ibama, da segurança pública, tudo é ouro para as grandes empresas de tecnologia. Para aproveitar isso, o Brasil precisa formular políticas de uso e compartilhamento de dados, tem que ter regramento e responsabilização de quem vazar ilegalmente esses dados para o exterior, por exemplo”, explicou o pesquisador.

“Nós temos uma janela pequena de oportunidade, não podemos perder o trem, como dizemos aqui em Minas”, concluiu o professor. 

 

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