Dispositivo vestível para ajudar pacientes com distúrbio de voz a falar -  (crédito: Laboratório Jun Chen/UCLA)

Dispositivo vestível para ajudar pacientes com distúrbio de voz a falar

crédito: Laboratório Jun Chen/UCLA

Quase 36% da população brasileira, em geral, afirma ter sofrido com problemas de voz em algum momento da vida, segundo estudo epidemiológico de 2012. O relatório também mostrou que 63% dos professores relataram enfrentar esse tipo de complicação. O próprio orientador do estudo pertence a esse grupo acometido pela perda momentânea da voz — e daí veio a inspiração para que uma equipe de engenheiros da Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA), nos Estados Unidos, decidisse construir um dispositivo vestível que ajudasse indivíduos com o distúrbio a conseguir falar.

 

Para o projeto, o grupo recebeu financiamento do Instituto Nacional de Saúde dos Estados Unidos e do Escritório de Pesquisa Naval norte-americano, além da Associação Americana do Coração, da Brain & Behavior Research Foundation, do Instituto de Ciências Clínicas e Translacionais da UCLA e da Escola de Engenharia Henry Samueli da UCLA. Os pesquisadores construíram um aparelho macio, fino e elástico que mede cerca de 2,5cm e pesa aproximadamente 7 gramas. O dispositivo é fixado à pele, do lado de fora da garganta, e posicionado ao centro do pescoço, onde se localiza a laringe (órgão em que estão as cordas vocais).

 

O autor principal do projeto, Ziyuan Che, explica que o dispositivo funciona em três fases. "Na primeira etapa, detecta e captura o movimento dos músculos da laringe. Depois, transforma o movimento biomecânico em sinais elétricos detectáveis. O algoritmo classifica o sinal elétrico e seleciona o sinal de voz correspondente. Por fim, o sinal de voz é reproduzido pelo componente de alto-falante do equipamento", explica. O cientista, no entanto, salienta que o aparelho não funciona em pacientes com paralisia completa da musculatura da laringe.


 

Os cientistas iniciaram o projeto em julho de 2022. Che relata que a precisão do aparelho é de 95%, baseado nos experimentos feitos. O equipamento foi testado em oito adultos saudáveis — ou seja, sem distúrbio de voz. A equipe pediu para que os voluntários pronunciassem cinco frases em voz alta e de forma silenciosa. Essa análise foi executada com intuito de coletar informações sobre a movimentação dos músculos da laringe e, posteriormente, aplicar técnicas de machine learning (aprendizado de máquina, em tradução livre) no algoritmo para conseguir relacionar os sinais capturados com certas palavras.

 

Machine learning é uma área da inteligência artificial (IA) e da ciência da computação que, por meio de métodos estatísticos e análise de dados, treina sistemas autônomos. Che diz que o auxílio de um profissional com maior experiência em IA, nas etapas seguintes, pode aprimorar o aparelho. O cientista explica que, com um algoritmo mais avançado para gerar um codificador entre os movimentos biomecânicos e os significados semânticos, o dispositivo poderia ser capaz de "traduzir qualquer movimento muscular da laringe sem a necessidade de pré-gravar os sinais de voz". Além disso, o grupo quer testar o dispositivo em pessoas com distúrbio de voz e continuar a ampliar o vocabulário do equipamento.

 

Em entrevista ao Correio, Che declara que a equipe busca por oportunidades para comercializar o dispositivo e transformá-lo "em um produto que possa ajudar os pacientes necessitados". O pesquisador pondera que, para executar a aplicação em casos clínicos reais, necessitaria de mais três a cinco anos, incluindo a adaptação do aparelho em um produto médico e a aprovação da agência dos Estados Unidos equivalente à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), a Food and Drug Administration (FDA).

 

Desafios

 

O otorrinolaringologista do Hospital Israelita Albert Einstein, Fernando Danelon Leonhardt, explica que o dispositivo desenvolvido pelo grupo da UCLA está em estágio inicial. O médico esclarece que começar os testes em um grupo de pessoas sem distúrbio de voz é uma maneira "mais fácil" de compreender como o comportamento da laringe reflete na fala para treinar o algoritmo. "Você cria um padrão para depois tentar adaptar em quem tem alguma alteração", diz.

 

Leonhardt pondera que uma dificuldade que o aparelho pode apresentar é para entender as alterações anatômicas resultantes de uma intervenção cirúrgica na laringe. Isso porque — apesar da técnica usada na operação ser a mesma — o tecido retirado e a cicatrização em cada paciente pode ser diferente.

 

"Essa pesquisa precisa expandir para sabermos o quanto será promissora, mas só em ter uma possibilidade nova, já é interessante. Mesmo que não dê certo, é um passo a mais para, eventualmente, alguém pegar esse estudo e desenvolver algo novo", relata Leonhardt.

 

Para Ana Carolina Constantini, professora de fonoaudiologia da Universidade de Campinas (Unicamp), compreender o quanto o algoritmo consegue reproduzir o que temos de repertório de fala é um desafio. "[Os pesquisadores] colocaram os participantes para repetir cinco frases. Não é só com cinco frases que nos comunicamos. Não sei se conseguirá suprir todas as necessidades do ser humano. Acho superlegal, é um caminho, mas tem bastante coisa para aprofundar", argumenta.

 

Constantini também pontua que pacientes que tiveram câncer na laringe podem precisar fazer radioterapia, o que deixa a musculatura "mais enrijecida". "Será que esse dispositivo conseguirá ler os movimentos de um pescoço muito rígido? A gente não sabe. São problemas que eu imagino que essa equipe de pesquisadores terá que trabalhar a partir de agora", afirma.

 

Prevalência

 

No Brasil, esse tipo de tumor é o terceiro mais prevalente entre os de cabeça e pescoço. Os homens com mais de 70 anos são os mais acometidos pela doença. Segundo o Instituto Nacional de Câncer (Inca), a expectativa é de que sejam diagnosticados 7.790 novos casos, por ano, de 2023 a 2025.

 

De acordo com Constantini, o câncer de laringe é um dos principais causadores do distúrbio de voz e, em alguns casos, mesmo com o diagnóstico precoce, pode resultar em uma alteração do som da voz. A professora conta que o caso do presidente Luiz Inácio Lula da Silva é um exemplo "clássico". O chefe do Executivo foi diagnosticado com um tumor na laringe em outubro de 2011 e fez quimioterapia até fevereiro de 2012. "Ele tratou no começo. Precisou fazer uma intervenção pequena. A voz dele está um pouco diferente de antes, piorou, em termos de qualidade", explica.

 

Leonhardt afirma que o paciente diagnosticado em estágio inicial tem cerca de 90% de chance de cura. Em casos mais avançados, o médico diz que o indivíduo pode necessitar de intervenção cirúrgica maior, que pode retirar toda a sua laringe. Assim, a pessoa precisará aprender a falar de uma nova maneira.

 

Segundo Leonhardt, há três principais formas de reabilitação vocal do paciente sem laringe. Uma é a laringe eletrônica, um aparelho externo que faz vibrar a musculatura cervical. Outra é com a deglutição do ar e o indivíduo usa vibração do esôfago para falar, essa alternativa é chamada de voz esofágica. O último meio é a punção traqueoesofágica em que se liga a faringe com a traqueia.

 

O otorrinolaringologista afirma haver uma demanda para novas formas de reabilitação vocal, porque não são todos as pessoas que se adaptam aos procedimentos existentes, e destaca que indivíduos não alfabetizados precisam ainda mais fazer uso da comunicação verbal. "Se surgir, é muito bem-vinda no sentido de que pode servir como uma reabilitação para esses pacientes", diz.

 

*Estagiária sob a supervisão de Renata Giraldi