“A sexta-feira santa aqui em casa para nós é um dia santo. É uma semana realmente santa, sagrada para todos nós filhos, netos, bisnetos, tataranetos de Ana Maria – matriarca da Tenda de Umbanda do Caboclo Pena Branca, aqui na cidade de São Francisco – a mulher que sempre comandou e construiu tudo isso”, emociona Janete Cardoso, makota ( zeladora dos orixás) que hoje coordena, junto com a mãe Mylla de Iansã, o lugar e guia os filhos e filhas na feitura do cordão de São Francisco, no Norte de Minas Gerais, que é uma celebração muito peculiar no Brasil. As tradições da quaresma e semana santa são enraizadas no coração do povo mineiro desde os primórdios da formação de Minas Gerais. São fios que se entrelaçam com a história e a cultura, pulsando com fervor e devoção.
A Secretaria de Estado de Cultura e Turismo – Secult/MG, com um propósito nobre de exaltar e preservar essas tradições e riquezas culturais da fé, lançou este ano a segunda edição do programa turístico Minas Santa, que abrange 600 cidades no estado e abraça outras religiões em nome da diversidade religiosa.
A inclusão de outras religiões faz parte do Catálogo “Celebrações e Ritos da Semana Santa em Minas Gerais”, elaborado em 2023 pelo Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais, Iepha-MG – um testemunho vivo do patrimônio imaterial que permeia as manifestações religiosas em solo mineiro. Cada página deste catálogo é um fragmento de devoção e história, fruto de um esforço coletivo que ressoa em cada município que abraçou a iniciativa com fervor. As tradições da quaresma e semana santa, tão profundamente enraizadas na alma do povo, ganham vida através das imagens e relatos enviados pelas prefeituras e grupos locais. É um mergulho profundo no tecido cultural que une passado e presente, trazendo à luz a diversidade de ritos e celebrações que ecoam desde o século 18.
Espaços sagrados
Para Adriano Maximiano, diretor de Patrimônio e Memória do Iepha-MG, o catálogo dos ritos da semana santa em Minas identificou além das celebrações mineiras muito tradicionais, como as encenações da Paixão de Cristo e as procissões, a presença de espaços sagrados, territórios de Axé e fé, por exemplo: “identificamos e mapeamos os espaços de matriz afro-religiosa em Minas Gerais com celebrações vinculadas à semana santa, principalmente na Sexta-feira da Paixão, onde terreiros de umbanda informaram os rituais de recolhimento, de fechamento de corpo e do candomblé – que é o lorogun – que é uma história de luta dos orixás durante esse período que coincide com a quaresma, ele não é uma celebração afro católica, digamos assim, trata-se de uma celebração africana mesmo. Na cerimônia, ocorre simbolicamente uma luta, que lembra a dança folclórica do maculelê".
Adriano destaca outros ritos que promovem a diversidade e o sincretismo religioso em Minas. “Teve o cadastro dos rituais de encomendação das almas, também conhecido como reza das almas, onde as pessoas têm a tradição de, durante a quaresma e, principalmente, na noite da Sexta-feira da Paixão, fazer orações cantadas bem peculiares com um método de canto bem tradicional, onde eles rezam em encruzilhadas, nas portas das casas, no cemitério, onde eles encomendam as almas das pessoas que faleceram com diversos motivos. Então eles rezam para as almas dos afogados, rezam para as almas dos queimados, rezam para as almas das crianças, rezam para as almas dos mais velhos e por assim vai".
Herança viva
Ritual marcante em Minas é a feitura do cordão de São Francisco, que foi cadastrado pelo município de São Francisco, na região Norte mineira, e realizado na comunidade do Quilombo Caboclo Pena Branca. Trata-se da confecção artesanal, produzida com a matéria-prima do algodão e, conforme os fundamentos da comunidade, deve ser realizada nas sextas-feiras santas, o que ocorre há mais de 60 anos. Segundo dados do cadastro, o ritual teve origem com a construção da primeira “casa de reza”, que deu origem ao terreiro de umbanda e ao quilombo. A matriarca do local, Mãe Makota Janete, aprendeu o ofício com seus ancestrais e o transmite para as novas gerações da comunidade.
Na beira do Rio São Francisco, os filhos e filhas de santo confeccionam um cordão em um ritual onde a reza é toda cantada em excelências e benditos (são cantos sagrados, mortuários em geral, mas também convocatórios e para livrar de males específicos do universo da religiosidade popular, usados para velar os mortos, geralmente entoados por mulheres). Na sequência, acontece o ritual de desobsessão (ou de exorcismo) com a utilização do cordão durante a noite. Por fim, o ritual de encomendação das almas.
Mãe Janete comemora a presença das religiões de matriz africana no Minas Santa: “pra mim é uma alegria muito grande ter a nossa fé contemplada pelo Minas Santa, um sentimento de uma realização de trazer pra todo mundo o que temos de mais sagrado, que são nossa crença e nossos ritos”. Ela reverencia os santos padrinhos do terreiro que são: Santa Joana D'arc e São Jorge Guerreiro e explica o que o terreiro representa. “A gente fala que aqui é a Tenda de Umbanda do Caboclo Pena Branca – que representa tudo de bom para uma família, para um legado familiar. Um lugar espiritual, de emoção, de fortaleza, de fé e, principalmente, de gratidão. Nós continuamos com aquela fé da umbanda, simples, mais funcional, sabe? A fé que cuida, que acolhe, que luta muito para dar um alento para as pessoas que sempre nos procura. Sejam bem-vindos!”
Resistência
A intolerância religiosa é até hoje um entrave para aqueles que procuram preservar as tradições religiosas de matriz africana. Mãe Janete reforça o caráter de amor e paz que o local proporciona aos milhares de filhos e filhas de santo e visitantes que por lá passaram nos últimos 60 anos. “A vida de um umbandista ou candomblecista em uma cidade tão pequena, como aqui em São Francisco, é muito penosa. Principalmente na época em que minha mãe fez as obrigações de umbanda. A primeira vela que se colocou nessas terras aqui, foi em 1958. Naquela época, ela chamava de missa, um lugar onde se cultua a fé. O terreiro, aqui em casa, sempre foi um terreiro de umbanda. Minha mãe conta que é uma herança ancestral e espiritual. Ela vem de muitas gerações, já vinha com minha bisavó, que era parteira e benzedeira, inclusive foi ela quem me colocou no mundo. Hoje em dia, o amor pelo sagrado e pelos que aqui passaram, não acaba’.
Afromineiridades em destaque
Durante o período quaresmal e da semana santa, os municípios de Minas Gerais apresentam uma grande pluralidade de manifestações religiosas. Algumas delas se destacam pela sua singularidade, como por exemplo as tradicionais procissões, encenações da Paixão de Cristo, tapetes de serragem coloridos, festas e celebrações típicas da região. Essas manifestações refletem a diversidade cultural e religiosa presente no estado de Minas Gerais, enriquecendo as tradições locais e aprofundando a fé dos fiéis durante esse período tão importante para a religiosidade cristã.
No contexto de ritos realizados por religiões de matriz africana no período da semana santa, foram levantados pelo Iepha-MG o recolhimento de filhos de santo – como a realização do lorogun/ olorogum ( uma cerimônia que paralisa a maioria das atividades nos terreiros de candomblé. Ela acontece propositadamente no período da quaresma católica, terminando justamente no Sábado de Aleluia, onde começa o início do ano litúrgico, que seria o Ano Novo para o povo santo). Trata-se de uma expressão das tradições afro religiosas de Nação Ketu, enriquecendo ainda mais o mosaico cultural que é Minas Gerais.
O município de Formiga, região Sudeste de Minas Gerais, cadastrou o Recolhimento - Tenda de Umbanda Pai Xangô. Conforme a descrição da manifestação, informada pelo município, o “terreiro realiza o Lorogun, tampando o altar com um pano roxo, e há uma limpeza geral com defumador e descarrego”. De acordo com o cadastro, o terreiro pratica a manifestação desde 1986.
Em cada canto do estado, seja em São Geraldo da Piedade ou Belo Oriente, o Boi Balaio dança pelas ruas, trazendo consigo a alegria e o colorido das festividades populares no Sábado de Aleluia. Com 75 anos de história em Belo Oriente, o Cortejo do Boi Balaio é mais do que uma simples brincadeira; é um elo entre passado e presente, entre tradição e renovação. Assim, essas manifestações únicas revelam a alma pulsante de Minas Gerais, um tesouro cultural a ser preservado e celebrado para as gerações futuras.
Encomendação das Almas
A Encomendação das Almas, outro rito que ecoa nas margens do Rio São Francisco, é mais do que uma simples celebração; é um ato de piedade que transcende fronteiras geográficas e temporais. Em cada município de Minas Gerais e do Brasil, essa prática se desdobra em nuances singulares, refletindo a identidade e a devoção de cada local. Em Manga, no coração do Médio São Francisco, a Comunidade Quilombola de Justa II se ergue como guardiã desse antigo ritual, onde as madrugadas da Quaresma são preenchidas com preces pelas almas em purgatório, em busca da paz e do descanso eterno.
Vestidos de branco, com apenas o rosto a descoberto, os participantes da Encomendação das Almas percorrem as ruas em silêncio, guiados pela matraca e pela cruz. À medida que avançam, as janelas se fecham em respeito, testemunhando a passagem da devoção pela comunidade adormecida. Cada passo, cada oração entoada, carrega consigo séculos de tradição e fé, unindo passado e presente em um só instante sagrado.
Nas regiões Sul e Sudoeste de Minas Gerais, a Folia das Almas é um momento profundamente emocionante e cheio de significado, registrado com grande devoção pelos municípios de São José da Barra e Delfinópolis. Em São José da Barra, o rito é composto de cantos lamentosos, onde os participantes dedicam suas preces às almas de seus entes queridos já falecidos, bem como às almas que necessitam de orações, como as do purgatório. Em Delfinópolis, trata-se de um rito noturno, onde os participantes caminham visitando casas, capelas, monumentos, cruzeiros e igrejas para rezar em memória dos falecidos na região do Vale da Gurita e da Canastra. Durante essas visitas, as orações são entoadas e acompanhadas pelo som emocionante de matracas, ressaltando uma tradição que perdura ao longo dos anos.