Queijos produzidos no Quintal do Glória, em Santo Antônio do Glória, são alimentos com fé. De acordo com a produtora Nilcéia Vilela, ela reza um rosário para que saia tudo divino -  (crédito: Carlos Altman/EM)

Queijos produzidos no Quintal do Glória, em Santo Antônio do Glória, são alimentos com fé. De acordo com a produtora Nilseia Vilela, ela reza um rosário para que saia tudo divino

crédito: Carlos Altman/EM

A vida de quem produz queijo artesanal em Minas nunca foi fácil. A estrada de terra vermelha, de difícil acesso e, muitas vezes, longe das sedes das cidades, é o caminho de partida e de chegada de histórias de famílias que vivem, de forma simples, em pequenas fazendas leiteiras cercadas por montanhas e vales. No mundo concorrido, leis antigas impõem barreiras e delimitam espaços. Negados a vender seus produtos fora do estado, os guerreiros mineiros, nascidos na Região da Canastra, decidiram burlar as regras, e clandestinamente, levaram na bagagem queijos crus para participar, em 2019, do 4º concurso ‘Mondial du Fromage et des Produits Laitiers’, realizado na cidade de Tours, na França. Voltaram de lá com 50 medalhas, desde bronze, prata, ouro e o super ouro – maior condecoração da disputa. Desde então, a Canastra nunca mais foi a mesma.


 

E a região mineira da Serra da Canastra está em festa. Depois de uma longa espera e muita ansiedade, os produtores queijeiros de lá soltam foguetes para comemorar o reconhecimento dos tradicionais “Modos de Fazer o Queijo Minas Artesanal” , nesta quarta-feira (4/12), como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade, pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). A decisão foi tomada durante a 19ª Sessão do Comitê Intergovernamental para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial da Unesco, em Assunção, no Paraguai.

 

Inverno em Minas

Lançado na em junho pela Secretária de Cultura e Turismo, o programa Inverno em Minas teve a Região da Canastra como um dos cinco destinos a serem explorados pelos turistas. Na emblemática região, o visitante vai saber que os queijos não são apenas alimentos – são a expressão viva da cultura e das tradições seculares dos produtores da área. Eles priorizam a excelência e a sustentabilidade, garantindo que os produtos vendidos no mercado não apenas satisfaçam o paladar, mas também honrem e propaguem o prestígio da região no cenário global.


Elaborado artesanalmente por produtores locais, o queijo Canastra de sabor marcante e textura aveludada conquistou diversos prêmios internacionais, tornando-se um ícone da gastronomia brasileira. A região se destaca não apenas pela sua beleza estonteante, mas também pela autenticidade de suas tradições e pela paixão dos produtores locais em manter viva a arte secular da produção do queijo mineiro.

 

 

Os municípios de Vargem Bonita, Bambuí, Delfinópolis, Medeiros, Piumhi, São João Batista do Glória, São Roque de Minas, Tapiraí  compõem a legítima Região do Queijo Canastra, onde aproximadamente 800 famílias perpetuam uma herança cultural preciosa. Segundo o agrônomo e ex- presidente da Aprocan, a Associação dos Produtores de Queijos da Canastra, João Carlos Leite, o microclima único, aliado a fatores distintos, confere ao queijo Canastra uma identidade inconfundível. “O termo francês ‘terroir’ pode ser traduzido como ‘torrão de terra’, mas seu significado é mais profundo. Terroir representa a interação entre a composição mineral do solo, a altitude, o clima, a flora e todos os elementos que contribuem para a formação de uma flora microbiana exclusiva da região”, explica ele. Essa interligação de fatores se manifesta no queijo, conferindo-lhe um sabor singular e inimitável.


Saga do queijo 


Entre os produtores que vivenciaram a saga de levar o queijo mineiro para a França estava Maria Lucilha de Faria, atual presidente da Associação dos Produtores de Queijos da Canastra (Aprocan). A produtora sentiu apreensão ao pisar no aeroporto internacional de Campinas, carregando em suas malas um tesouro proibido. Na época, aos 34 anos, essa mineira sabia que o que escondia entre suas roupas poderia causar problemas. Durante o check-in para a França, um policial federal a abordou. Ela e seus colegas, que tentavam disfarçar o forte aroma do seu “contrabando” sob camadas de plástico filme, não passaram despercebidos.


Interrogada sobre o conteúdo suspeito, o grupo admitiu: eram queijos. Representantes da Serra da Canastra, eles levavam o sabor de Minas Gerais para o Mundial de Queijo de Tours, um evento bienal que celebra os melhores produtores do mundo. O oficial, após uma inspeção em um dos 15 queijos e ouvir as explicações necessárias, deu o veredito: Maria poderia seguir viagem com sua preciosa carga. ““O medo de ver nosso trabalho confiscado e descartado era avassalador”, confessa Maria Lucilha.


Leis sanitárias 

 

 João Carlos Leite, produtor da queijaria Roça da Cidade, de São Roque de Minas, vê a importância de desburocratizar para a Canastra ir mais longe

João Carlos Leite, produtor da queijaria Roça da Cidade, de São Roque de Minas, vê a importância de desburocratizar para a Canastra ir mais longe

Carlos Altman/EM


“O autêntico queijo de leite cru da Canastra, que é a essência de nossa região, enfrentou proibições. Nas décadas de 1990 e 2000, com o crescimento do Brasil, surgiu uma demanda crescente pelo nosso queijo. Com a produção limitada, iniciaram-se fiscalizações rigorosas, tanto tributárias quanto sanitárias. Em São Paulo, por exemplo, os fiscais descartavam o queijo, aplicavam criolina e o enviavam para aterros sanitários, devido à sua proibição. Essa situação levou o queijo Canastra a uma espécie de mercado clandestino, sendo até referido como ‘tráfico’ do queijo da região”, relata João Carlos Leite, ex-presidente da Aprocan, a Associação dos Produtores de Queijos da Canastra.


Em junho de 2022, o governo federal publicou Decreto (Nº 11.099/22), que regulamentou a legislação (Lei nº 13.860/19), que tratava da elaboração e comercialização de queijos artesanais a partir do leite cru. A Lei trouxe importantes avanços para a cadeia do queijo artesanal brasileiro. Dentre elas:


• A não obrigatoriedade de maturação dos queijos artesanais por um período mínimo de 60 dias;


• A obtenção do registro no serviço de inspeção municipal (SIM) é condição suficiente para a comercialização dos queijos artesanais em todo o território nacional e permite ainda a exportação deste importante produto;


• A simplificação de processos e procedimentos de fiscalização;


• Assistência técnica para auxiliar o pequeno produtor na implantação dos programas de boas práticas agropecuárias e de fabricação do queijo artesanal para a formalização da atividade.


Com a mudança, os queijos artesanais elaborados por métodos tradicionais, com vinculação e valorização territorial, regional ou cultural serão identificados por selo único com a indicação Queijo Artesanal. Queijos artesanais a partir de leite cru.


Selo Arte

O decreto prevê que os produtos alimentícios de origem animal produzidos de forma artesanal, com características e métodos próprios, tradicionais, culturais ou regionais, serão identificados por selo único com a indicação Arte.


A concessão de selo Arte é um ato de competência dos órgãos de agricultura e pecuária federal, estaduais, municipais e distrital que reconhece e caracteriza o tipo de produto alimentício artesanal, conforme características de identidade e de qualidade específicas, e o seu processo produtivo tipicamente artesanal.

 

 




Patrimônio e prêmios

 

Queijaria Tradição Vilela, de São Batista do Glória vence, pela primeira vez, com medalha de bronze, concurso internacional da ExpoQueijo Araxá

Queijaria Tradição Vilela, de São Batista do Glória vence, pela primeira vez, com medalha de bronze, concurso internacional da ExpoQueijo Araxá

Carlos Altman/EM


Quem visita a Serra da Canastra se encanta com os cenários típicos de cerrado com campos rupestres, vegetação de Mata Atlântica e, principalmente, pelo queijo premiado que é produzido na região há mais de 200 anos. O tradicional Queijo da Canastra – conhecido por ter uma casca amarela por fora e por ser macio e saboroso por dentro–, é tão famoso que o seu modo de produção é reconhecido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) como Patrimônio Cultural Imaterial Brasileiro, desde 2008. Nesta quarta-feira, o modo de fazer o queijo artesanal de Minas foi reconhecido como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco).

 

 

Pelo segundo ano consecutivo, o Queijo Minas Artesanal (QMA) produzido na região da Nascente do Rio São Francisco, em 2023, entre os 50 melhores do mundo no ranking do site americano Taste Atlas, plataforma colaborativa cujos usuários contribuem para a construção do conteúdo, com comentários, imagens e notas. A iguaria mineira, que em meados de 2022 chegou a liderar a lista, conquistou no ano passado o 12º lugar, à frente de exemplares famosos internacionalmente, como o italiano Mozzarella e o suíço Gruyère.  

 

Atualmente, podem ser comercializados como QMA da Canastra os queijos elaborados em oito municípios: Bambuí, Delfinópolis, Medeiros, Piumhi, São João Batista do Glória, São Roque de Minas, Tapiraí e Vargem Bonita, que cumprem o Caderno de Normas da Indicação Geográfica. As localidades são reconhecidas como produtoras desse tipo de queijo, a partir de estudos e levantamento histórico realizados pela Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Estado de Minas Gerais (Emater-MG).


Três regiões produtoras de queijo no estado, já conquistaram o registro de Indicação Geográfica (IG), na modalidade Indicação de Procedência (IP), conferida pelo Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI). São elas: Serro (2011), Canastra (2012) e Cerrado (2023). A chancela reconhece a autenticidade dos queijos produzidos em determinada região, valorizando a cultura e a tradição local, impulsionando o desenvolvimento econômico do território, fortalecendo a reputação regional e criando mais um diferencial competitivo para o mercado.



Tipos de Canastra 

 

 

Reinaldo de Faria Costa, produtor em Vargem Bonita, cidade banhada pelo Rio São Francisco, que já viveu do garimpo e hoje se orgulha de outra "pedra preciosa": o queijo

Reinaldo de Faria Costa, produtor em Vargem Bonita, cidade banhada pelo Rio São Francisco, que já viveu do garimpo e hoje se orgulha de outra "pedra preciosa": o queijo

Carlos Altman/EM


 

Muita gente acha que é um tipo de queijo. Mas na verdade, só podem ser chamados de Canastra os queijos feitos na Região da Nascente do Rio São Francisco, de forma artesanal, com leite cru, seguindo a tradição. 

 


CURA NA SUA CASA

 

Como o queijo da Canastra é um alimento vivo, ele pode continuar o processo de maturação em casa. É só deixar o queijo em um local fresco e arejado, lavar a cada três ou quatro dias e não se esquecer de virar todos os dias.



ALIMENTO SEGURO

 

Algumas pessoas não conhecem o modo de produção artesanal e acham que só os alimentos industriais são seguros. Quando o queijo é feito com boas práticas de higiene, a maturação se encarrega do resto. A maturação nada mais é do que a briga entre as bactérias boas e más. No final, o bem vence. É por isso que a gente chama o queijo maturado de curado.



ALIMENTO VIVO

 

É importante entender que o processo de cura não para, mesmo depois que o queijo sai da fazenda. Mas se você quiser interromper o processo de maturação, você pode embalar e resfriar seu queijo na geladeira.

FRESCO

 

É um queijo bem novo, com sabor de leite fresco e textura macia que derrete na boca. Muito apreciado no café da manhã, na hora do lanche ou com doce de leite.


MEIA CURA

 

O meia cura é um queijo com mais ou menos dez dias de maturação. Seu sabor é perfeito para acompanhar um cafezinho coado na hora ou para comer uma deliciosa goiabada de cascão.



CURADO

 

É o queijo da Canastra como era antigamente. Com mais de 22 dias de maturação, tem sabor marcante, perfeito para uso na gastronomia e para acompanhar vinhos e cervejas especiais. Hoje é o único que pode ser comercializado com o selo da IP Canastra.

 

Composição do Queijo Canastra


LEITE PURO

 

O queijo é feito do leite de vacas que nascem e vivem livres no campo, se alimentando de pastagem natural. Ele é feito com leite cru, não usam leite pasteurizado. É feita só uma ordenha por dia, na parte da manhã.



PINGO

 

Depois do coalho, é hora de colocar o pingo, um fermento natural feito pelos produtores. É assim: o soro que escorre dos queijos, que estão descansando, é usado como fermento na produção do dia seguinte. Isso contribui para que o queijo de cada produtor seja diferente um do outro, porque cada um usa o seu próprio pingo.

 

SAL A GOSTO

 

Já com a massa na forma é hora de cada produtor dar o seu toque especial no tempero do queijo. É usado só o sal grosso e mais nada. A quantidade é que vai fazer a diferença. Após o sal, chega a hora de “limar” o queijo. Nessa parte do processo, cada peça é lixada por fora para fazer o acabamento.




 


História do queijo

 

Dizem os antigos que o queijo veio de Portugal e que foram os tropeiros que levavam para a região mineira em suas travessias. Antigamente, nossos avós faziam queijo só para o sustento da família. Aos poucos o queijo começou a ser vendido em outros vilarejos perto daqui. Para não amassar, o queijo só podia viajar com mais de 30 dias de cura, quando já estava mais firme e amarelado. O Queijo da Canastra mantém uma tradição de mais de 200 anos. E os produtores seguem as mesmas normas de antigamente e boas práticas exigidas para a produção de queijo artesanal para garantir um produto de alta qualidade.

 

*O jornalista viajou para a região da Canastra a convite do Governo de Minas