Perfilados diante da mesa do café da manhã, Reis e Rainhas – com suas coroas, mantos e cetros – ouvem a cantiga de boas-vindas e dão um salve à Nossa Senhora do Rosário. Os capitães das guardas, à frente da realeza, entoavam uma canção lamuriante em um dialeto não compreensível e instigante. Os ditos regentes das tradições monarcas agradecem aquele encontro, agradecem o café servido com afeto, agradecem a presença dos súditos naquela manhã. A cada momento, novas guardas chegavam e as mesas simples eram reabastecidas com o banquetes dos deuses – leite, café, biscoitos, bolos e pães – para receber os convidados, os devotos caminhantes de todas as idades, com suas vestimentas impecáveis, seus tambores e triângulos.
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No último domingo (8/9), cerca de 12 grupos de Congados e Reinados caminharam pela mesma rota outrora trilhada pelo Imperador Dom Pedro II, quando visitou Minas Gerais, em 1881. Pelas ruas do antigo arraial mineiro, pequenos grupos da região de Lagoa Santa, Matozinhos, Fidalgo, Mocambeiro, São José da Lapa, Santa Luzia e Vespasiano celebraram a irmandade do povo negro, com sua ancestralidade, suas tradições, cânticos e devoção. À frente deles, estandartes com os santos pretos de devoção – Nossa Senhora do Rosário, Santa Efigênia e São Benedito. O dia só estava começando, pois, o grande ato daquela corte monarca seria mesmo em outro lugar – o templo sagrado e cheio de devoção da Capela de Nossa Senhora do Rosário –, na comunidade da Quinta do Sumidouro, em Pedro Leopoldo.
Dentro da pequena capela, toda a comunidade, como em transe e com terços nas mãos, ouvia os louvores e cânticos da cerimônia católica. Diante dos olhos lacrimosos, a devoção era toda direcionada à imagem de Nossa Senhora do Rosário, atribuída ao Mestre Aleijadinho. Para as crianças que lá estavam, a homilia do padre era despercebida diante das belas pinturas da nave da capela, feitas em estilo Rococó, característico da terceira fase do Barroco Mineiro.
A capela do Rosário é uma das poucas construções brasileiras que passou pelas três fases do Barroco Mineiro, destacando sua importância histórica em Minas Gerais. O Conjunto arquitetônico da Quinta do Sumidouro, formado pela Capela, a Lagoa da Lapa e a Casa de Fernão Dias, é tombado como Patrimônio Histórico do Estado pelo IEPHA/MG desde 1976.
Lagoa Santa
As fitas coloridas no arranjo de cabeça voltarão à bailar ao sabor do vento. O som do chocalho nos pés dos integrantes da Guarda de Moçambique será ouvido de longe. Os espelhos adornados nas roupas dos devotos voltarão a refletir o brilho do evento. Pelo caminho, Reis e Rainhas serão reverenciados por sua corte e adoradores.
Abaixo de suas coroas e abraçados por seus mantos, Josés, Marias, Anas, Joãos, Pedros fazem parte de uma gente humilde, simples moradores de diversas comunidades, que se engrandece ao reafirmar o legado de seus antepassados – o Congado vive e permanecerá eterno na alma e na crença de quem tem fé. E novamente, a realeza terá um encontro marcado neste final de semana, dia 15 de setembro, na comunidade da Lapinha, antigo quilombo em Lagoa Santa. A região, onde se encontra a Gruta da Lapinha, também foi visitada por Dom Pedro II em sua visita à Minas Gerais.
Festa de Nossa Senhora do Rosário - Lapinha, Lagoa Santa
Domingo - 15/9
7h - Encontro de Congadeiros e guardas visitantes
7h30 - Café oferecido por Lilian e Zé e pelos responsáveis perpétuos
Rua Guilhermina Pereira de Freitas, 510, Lapinha.
11h - Celebração Eucarística em honra a Nossa Senhora do Rosário
Celebrante: Padre Luís Gustavo de Oliveira
12h - Almoço oferecido pelos Reis do ano de 2024 e doce oferecido pelos reis de congo
15h - Leilão de gado
17h - Procissão saindo da Igreja de Nossa Senhora do Rosário da Lapinha
18h - Coroação dos novos reis do ano 2025
História do Congado no Brasil
De origem africana, das áreas do Congo, Moçambique e Angola, o congado chegou ao Brasil com os escravos e passou a ser também uma manifestação católica. Acredita-se que a história do congado em Minas Gerais começou com a vinda de Chico Rei, que era rei no Congo, na África, e veio para o Brasil na metade do século 18 e virou escravo na antiga Vila Rica. Ele conseguiu comprar sua liberdade e a de outros conterrâneos com seu trabalho e voltou a ser "rei" na então Ouro Preto. De acordo com Márcia Basílio, Rainha do Povo na comunidade da Quinta do Sumidouro, a Capela de Nossa Rosário foi construída por descendentes do rei escravizado: “todo mundo vai falar que são parentes de Chico Rei”, porque é uma origem ancestral. O conceito de família para os africanos é diferente do nosso, não é o sanguíneo, é a representação de todo um povo”.
O Congado ou Congada é uma manifestação cultural e religiosa afro-brasileira que surgiu no continente africano e foi introduzida no Brasil com a chegada dos primeiros escravos. É uma mistura de tradições africanas e católicas, considerada uma das mais autênticas expressões da brasilidade. A congada é um bailado dramático com canto e música que recria a coroação de um rei do Congo, terminando em uma procissão até uma igreja, geralmente de irmandades de negros, onde acontece a cerimônia de coroação. É uma homenagem aos antepassados, aos reis, às divindades e aos anciãos, animada por danças, cantos e música, realizada em diversas regiões do país, especialmente na região Sudeste.
Patrimônio mineiro
No final do mês passado, Congados e Reinados foram reconhecidos como Patrimônio Cultural Imaterial de Minas Gerais. Leônidas de Oliveira, secretário de Cultura e Turismo de Minas, ressaltou na cerimônia no Palácio da Liberdade que preservar as culturas populares e tradicionais do estado de forma ampla, técnica e livre, tem sido meta do governo de Minas, por meio do Iepha-MG. Para ele, a criação do programa Afromineiridades contempla expressões culturais mineiras como congadas, capoeira, terreiros, hip hop e samba.
"O programa faz a catalogação e inventariação dessas manifestações da cultura afromineira e afrobrasileira. As congadas e reinados de Nossa Senhora do Rosário existem desde os primórdios da formação cultural de Minas Gerais e representam a raiz profunda da existência enquanto estado. Considerados patrimônio imaterial, o primeiro registro no âmbito desse programa, ficam protegidos pela força e amparo da lei, construindo-se como bem cultural de Minas Gerais. Abre caminho para que as demais expressões, no conjunto das manifestações da cultura afromineira, sejam protegidas como patrimônio ao longo dos próximos anos", reforça o secretário.