“Meu corpo é político”. A frase, repetida à exaustão, seja em hashtags, textos, músicas, filmes, camisetas ou nome de bares em séries ficcionais, nos faz pensar justamente nisso: quais corpos são políticos?; existem corpos mais políticos que outros. E, no domingo, Dia Nacional da Visibilidade Lésbica, nesta coluna dedicada aos corpos dissidentes, quero falar sobre os corpos de mulheres que amam outras mulheres.
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E fora do story, como você trata as pessoas gordas?O ódio que transforma: pessoas gordas podem ser felizes? Estridente demais para ser a mulher que sai pela porta dos fundos Dissidentes no divã: escuta pública incentivada pelo Saúde Sem Gordofobia Desejo desviante e objetificação dos corpos no mês da luta antigordofobia Setembro Amarelo: saúde mental para quais tipos de corpos?A data é celebrada 10 dias depois do Dia do Orgulho Lésbico (em 19 de agosto) e ambas estão ligadas a episódios históricos para o avanço dos direitos e representatividade para as mulheres lésbicas. Conforme nos conta a história, é a partir da década de 1980 que a pauta, em conjunto com uma organização política com demandas específicas para estas mulheres, ganha novos contornos e destaque.
Enquanto sonhamos com nosso próprio bar Corpos Políticos, tal qual o que é retratado na série “Crônicas de San Francisco”, onde qualquer pessoa identificada com a sigla LGBTQIA%2b ou não pode subir no palco e manifestar-se, usamos este espaço para falar sobre o que nos atravessa.
Revolução de Stonewall à brasileira
Uma década antes, a repercussão da Revolução de Stonewall já tinha se espalhado não só por Nova York, mas em todo o mundo e, por aqui, o Somos: Grupo de Afirmação Homossexual, criado para lutar pela pelos direitos da comunidade LGBTQIA , deu origem ao Grupo de Ação Lésbica Feminista (Galf), que contribuiu para a criação dos dias tanto do orgulho como da visibilidade.
Assim, em 19 de agosto de 1983, o Galf deu início a um protesto no Ferro's Bar, em São Paulo, num ato que ficou conhecido como o “pequeno Stonewaal brasileiro”, já que o local reunia corpos dissidentes que no contexto da ditadura militar sofriam repressão, como uma noite em que a polícia militar foi acionada após um grupo de lésbicas tentar vender exemplares do jornal “Chanacomchana”.
Por isso, o Galf, liderado por Rosely Roth, invadiu o interior do Ferro's para ler um manifesto lésbico contra a censura do bar e exigindo que a venda do jornal fosse permitida, bem como que elas fossem respeitadas. Após o levante, o proprietário do bar pediu desculpas ao grupo. Em 2003, a data foi fixada no calendário como o Dia do Orgulho Lésbico em homenagem à ativista. Um pouco antes disso, em 1996, foi criado também o Dia Nacional da Visibilidade Lésbica.
Como nos diz a poeta, ensaísta e ativista da comunidade feminista negra Cheryl Clarke, no ensaio “Lesbianismo: um ato de resistência”: “ser lésbica em uma cultura tão supremacista-machista, capitalista, misógina, racista, homofóbica e imperialista é um ato de resistência que deve ser acolhido através do mundo por todas as forças progressistas”.
Ainda de acordo com ela, no ensaio: “Não importa como uma mulher viva seu lesbianismo – no armário, na legislatura ou na câmara (...) Não há um só tipo de lésbica, não há apenas um tipo de comportamento lésbico. Não há apenas um tipo de relação lésbica”.
A partir dessa premissa, é importante falarmos da pluralidade desses corpos, inclusive esses corpos nas ruas, vivendo em sua dissidência, em tempos obscuros de supervalorização da “moral e dos bons costumes”, portanto, visibilizar essas vivências e histórias se faz urgente.
E, para falar da importância da data, me cerco de livros de autoras contemporâneas que pontuam muito bem as existências lésbicas em suas obras para destacar a resistência desses corpos. Vale destacar aqui a multiplicidade de histórias, narrativas, estilos, evidenciando que a política destes corpos também se faz na escolha narrativa e subjetiva e encarar essa pluralidade é se permitir a chance de se conectar com outras versões e formas de se contar histórias, muitas sobre amor.
Confira algumas indicações literárias:
O corpo dela e outras farras, de Carmem Maria Machado (ed. Planeta)
Apresentado como um Black Mirror Feminista, o livro da autora estadunidente com origens cubanas, Carmem Maria Machado é um dos melhores que li - e reli - recentemente. Com oito contos distópicos, que ficam entre o horror, a ficção científica e os corpos das mulheres, a obra é exemplar em fazer os leitores, sobretudo as leitoras, sentir medo, sendo que o maior deles é ser mulher e ter um corpo exposto a todos horrores e violações que isso pode significar.
A espetacularização da violência sobre os corpos de mulheres - que são o play para todos os contos - é o principal questionamento inerente à obra de Carmem Maria Machado, que diz de estupros em série, mulheres que ouvem vozes, escritoras casadas com outras mulheres e a terrível obsessão pelo silêncio feminino, já tratada, inclusive, nesta coluna. Noutro conto, em forma de diário, a autora prevê um vírus que se espalha pandemicamente pelo mundo e narra os relacionamentos, inclusive com outras mulheres, que ela teve.
“Vulnerável"
Não há uma única vítima na delegacia inteira por três dias seguidos. nenhum estupro, nenhum assassinato. nenhum estupro seguido de assassinato. Nenhum sequestro Nenhuma pornografia infantil feita, comprada ou vendida. Nenhum molestamento. Nenhum ataque sexual. Nenhum assédio sexual. nenhuma prostituiçao forçada.
Nenhum tráfico humano Nenhum apalpamento no metrô. Nenhum incesto. Nenhum atentado violento ao pudor. Nenhuma perseguição. Nem mesmo uma ligação obscena indesejada. E então, no crepúsculo de uma quarta-feira, um homem assovia para uma mulher enquanto ela ia para uma reunião dos alcoólicos anônimos. A cidade inteira solta a respiração aliviada e tudo volta ao normal”.
Nenhum tráfico humano Nenhum apalpamento no metrô. Nenhum incesto. Nenhum atentado violento ao pudor. Nenhuma perseguição. Nem mesmo uma ligação obscena indesejada. E então, no crepúsculo de uma quarta-feira, um homem assovia para uma mulher enquanto ela ia para uma reunião dos alcoólicos anônimos. A cidade inteira solta a respiração aliviada e tudo volta ao normal”.
Nesta obra, toda protagonizada por mulheres múltiplas e plurais, todas lidam muito bem com a própria sexualidade, sendo que lésbicas e bissexuais têm mais destaque nas tramas.
“No útero não existe gravidade”, de Dia Nobre (ed. Penalux)
Com uma escrita intensa e forte, Dia Nobre faz sua estreia no hibridismo literário, com um livro que pode ser lido tanto como autoficção, romance, conto ou poesia e explora as múltiplas mulheres que vivem dentro da protagonista, passeando pela obscuridade dos laços familiares entre mãe e filha, abusos, abandono e memória.
Como uma boneca russa, Dia Nobre despedaça as próprias vivências e da personagem central em um ritmo específico e calculado, fazendo o leitor perder o fôlego página após página, se encolhendo tal qual a matrioska anunciada, até sobrar o íntimo, o miolo, o quase-avesso que habita o vazio.
“Garota, mulher, outras”, de Bernardine Evaristo (ed. Companhia das Letras)
Vencedor do Booker Prize de 2019, “Garota, mulher, outras” pode ser resumido como a polifonia da diversidade. Bernardine Evaristo é muito feliz na escolha narrativa da obra, que nem de perto é tradicional: sem letras maiúsculas e composta por versos, ela controla o ritmo do livro, imprimindo originalidade à trama. Em inglês, o estilo é chamado de fusion fiction.
Ao todo, 12 pessoas compõem as personagens com idades entre 20 e 90 anos, vivendo na Inglaterra a partir de diferentes descendências africanas e/ou caribenhas, através da habilidosa engenharia criada pela autora para exprimir a pluralidade dos atravessamentos nestas múltiplas vidas de 11 mulheres e uma pessoa identificada como não binária. Distante das cartilhas feministas que ao tentar libertar, aprisionam, Bernardine Evaristo troca as personagens de posição o tempo todo e consegue ser singular ao escolher a diversidade.
Temos uma obra sofisticada, longe de ser professoral, panfletária ou cansativa, apesar do número de páginas. Uma leitura saborosa e provocativa.
“Elas marchavam sob o sol”, de Cristina Judar (ed. Dublinense)
O novo romance da premiada escritora Cristina Judar fala sobre resistência e amor entre mulheres. Não da forma simplista como apresento aqui, mas com uma linguagem híbrida, que passeia entre muitas formas, numa trama que envolve garotas no início da juventude, personagens presas e torturadas pela ditadura militar e universos que convergem, como o da jovem Ana e o da mística Joan.
Temas caros à autora seguem também neste livro, como as pulsões, o desejo e a violência contra os corpos femininos, compostos agora por um novo elemento: a prisão.
“Antes que eu me esqueça”, organização Gabriela Soutello (Quintal Edições)
Publicada pela Quintal Edições, a antologia nos apresenta textos de 50 autoras lésbicas e bissexuais sobre memória. A organização é da Gabriela Soutello e traz uma curadoria pra lá de bem-feita, com uma multiplicidade de mulheres e narrativas, que passam por diferentes religiões, regiões, formatos e estilos de escrita, escritoras estreantes e escritoras já consagradas.
Entre as muitas participantes, podemos destacar mulheres como Natália Borges Polesso, Tatiana Nascimento, Taís Bravo, Dia Nobre, Nina Rizzi, Paloma Franca Amorim, Valeska Torres, Elizza Barreto, entre outras.
O livro traz também capa da artista Júlia Bertú e foi todo construído por um conselho composto por mulheres lésbicas e bissexuais.
O essencial de Perigosas Sapatas, de Alison Bechdel (ed. Todavia)
As amigas Mo, Lois, Ginger, Sparrow, Clarice, Toni e Jezanna ganham essa edição da novela ilustrada de Alison Bechdel. Vivendo em uma cidade de porte médio dos EUA, elas têm suas vidas acompanhadas por mais de 20 anos, onde se apaixonam, formam famílias, amam, sofrem, envelhecem e refletem sobre isso tudo. A obra é incrível ao mostrar, nas minúcias do cotidiano, o que é ser uma mulher lésbica.
“A Extinção das Abelhas”, de Natália Borges Polesso (ed. Companhia das Letras)
A premiada escritora Natália Borges Polesso usa a distopia como recurso da trama do novo romance “A extinção das abelhas”, que como o nome já anuncia - e os tempos também - a extinção dos pequenos insetos causaria o fim do sistema como conhecemos.
Ambientado em um futuro logo ali, a obra conta a história de Regina, que foi abandonada pela mãe e nos traz olhares sobre a falta de empatia e respeito às pluralidades com pessoas como as LGBTQIA%2b que passam a viver na clandestinidade desde então, num universo dominado por pessoas ricas.