“Não somos donas, somos guardiãs de uma história de 91 anos”, diz Aline Lacôrte. Junto com a irmã, Liliane Lacôrte, ela segue com o legado do bisavô, Arthur Spina, italiano da Sicília que veio tentar a vida no Brasil. Ele chegou a BH com um livro de receitas da família debaixo do braço, comprou um imóvel em frente à igreja do Bairro Floresta e, em 1932, abriu uma sorveteria. A Universal é uma das mais antigas da cidade e preserva receitas do início do século passado.
O negócio passou do bisavô para a avó e uma tia-avó de Aline e Liliane. Na terceira geração, quem assumiu foi a mãe delas, que viu, em 1994, a sorveteria ser destruída por um trágico incêndio. “A minha mãe ficou com o nome, as receitas e quatro máquinas italianas que usamos até hoje para bater os sorvetes”, conta Aline. Dois anos depois, a loja voltaria para o mesmo ponto, todo reformado.
As irmãs fizeram carreira em outras áreas. Aline era educadora física e Liliane trabalhava com comércio exterior. De vez em quando, ajudavam a mãe, que pensava em se aposentar. Até que um episódio direcionou a vida delas definitivamente para a sorveteria, já na quarta geração.
Adolescentes entraram na loja para comprar sorvete de doce de leite. Era o aniversário de 80 anos da avó e não havia presente melhor para ela. Conversa vai, conversa vem, uma linda história de amor se revelou. Essa senhora frequentava a sorveteria com os pais na década de 1930 e, num domingo ensolarado de footing, conheceu o grande amor da vida. Eles se casaram e formaram uma família. Décadas se passaram e, na ausência do marido, ela tomava o sorvete da Universal para sentir o sabor do verdadeiro amor.
“Entendemos naquele momento que vendíamos muito mais do que sorvete. Vendíamos alegria, sorriso, saudade, memória afetiva, fazíamos parte da história de várias famílias e isso era um prazer enorme”, relembra Aline. As irmãs, então, desistiram de vender o negócio e assumiram a sorveteria em 2015. Liliane é a responsável pela fábrica e Aline cuida do comercial. De lá para cá, elas expandiram a marca com o food truck (o primeiro de sorvete do Brasil, fazem questão de dizer) e abriram mais uma loja, no Bairro Mangabeiras.
Até hoje as irmãs fazem o sorvete como o bisavô fazia, com a mesma receita e o mesmo amor. Liliane foi estudar para entender o que tinha em mãos e virou mestre sorveteira.
“Lidamos com um sorvete que é uma iguaria. Poucas sorveterias no Brasil fazem como fazemos. Não compramos nada da indústria. O nosso sorvete não tem gordura hidrogenada, saborizante, creme de leite nem pasta pronta. Fabricamos tudo”, destaca, brincando que segue a “old food”, ou seja, usa as mesmas técnicas de 1930. A agenda de telefone onde a avó escreveu as receitas é uma herança que ela guarda com todo o carinho.
Natural e artesanal
Uma das máquinas que se salvou do incêndio fica exposta na loja do Mangabeiras, assim como uma pintura que reproduz a única foto que restou do bisavô na sorveteria. Liliane costuma colocar essa máquina para funcionar para mostrar ao público como se faz sorvete “de verdade”, natural e artesanal.
O que ela quer dizer com isso: mistura água, fruta in natura e da época (não se trabalha com polpa congelada) e açúcar (apenas o suficiente para equilibrar a frutose). Maracujá, abacaxi, limão, jabuticaba, graviola e manga são alguns dos sorvetes feitos dessa forma.
Hoje a fábrica, no Floresta, produz cerca de 70 sabores, que se revezam nas vitrines. O sorvete de doce de leite é um que está desde o início e continua a ser o mais vendido. Liliane suspeita que seja pelo fato de ser um sabor bem “mineirinho”. O doce de leite é preparado no tacho, como antigamente. O processo consiste em ferver leite com açúcar até evaporar, então vira praticamente um doce de leite gelado. Isso se repete com todos os outros doces, que servem como base para os sorvetes, como cocada, amor em pedaços e banana caramelada.
“Mantemos todos os sorvetes que fazemos desde a década de 1930, da mesma maneira, porém, como pretendemos continuar por muitos anos e agradar vários gostos e várias idades, é importante conhecer o mercado e acompanhar sua evolução”, aponta Liliane, que considera “uma responsabilidade muito grande” estar à frente de uma empresa tão antiga e que está na memória dos belo-horizontinos.
Segundo a mestre sorveteira, as pessoas hoje gostam de “comer” sorvete, por isso ela vem trabalhando diferentes texturas. O primeiro sabor nessa linha foi o Universal, de baunilha com caramelo, flor de sal e pedaços de chocolate, que está entre os mais pedidos. Depois vieram chocolate com doce de leite e castanha do pará, iogurte com calda de amarena e outros.
O último a chegar à vitrine foi o de bombom de uísque, com chocolate, crocante de castanhas e calda de caramelo de uísque.
Há oito anos como guardiãs da história da sorveteria, as irmãs se esforçam para fazer o melhor nessa geração para que as próximas (tanto da própria família quanto dos clientes) possam sentir o sabor desse legado. A quinta geração, representada pelos filhos de Liliane, já vem se envolvendo com o dia a dia da empresa.
“Esperamos que seja um desejo deles, assim como aconteceu com a gente. Temos o cuidado de mostrar como é bom, leve e alegre trabalhar com sorvete para que o desejo bata no coração deles e eles sejam os próximos guardiões”, comenta Aline.
Sorvetes preciosos
Nascido em Treviso, na região do Vêneto, o italiano Domingos Dias da Silva veio para o Brasil ainda bebê. Seus pais se instalaram em Oliveira para trabalhar como agricultores. Aos 17 anos, Domingos foi para a cidade de Bagagem (hoje Estrela do Sul) para se aventurar no garimpo e lá encontrou 17 diamantes. Com o dinheiro que juntou com a venda das pedras preciosas, ele abriu uma sorveteria em Oliveira, em 1929, a São Domingos.
A família não sabe ao certo o ano que a São Domingos se transferiu para Belo Horizonte, mas tem a informação de que o primeiro ponto era na Rua da Bahia. A partir de 1934, a história continuou na loja da Avenida Getúlio Vargas. Ou seja, há 89 anos, a esquina com bancos espalhados pela calçada é disputada por quem quer tomar sorvete.
“O meu pai se sentava na beira do meio fio, ficava experimentando as frutas que encontrava e analisava se daria um bom sorvete. Ele mesmo criava as receitas, como hoje eu crio”, destaca Domingos Dias Montenegro, o filho mais velho do segundo casamento do fundador da São Domingos, que assumiu a sorveteria há 44 anos, quase o mesmo tempo em que o pai comandou o negócio.
Quando Domingos faleceu, o filho tinha nove anos. Poucos dias depois da despedida, ele desceu para a fábrica (que fica no subsolo da loja) e, no ímpeto de aprender a profissão do pai, começou a aprender a fazer sorvete com os funcionários. Quanto mais se envolvia, mais pegava gosto pelo negócio. Antes de completar 15 anos, Domingos assumiu a empresa (que estava sob a responsabilidade da mãe e dois tios), já sabendo controlar praticamente todas as operações.
Ao longo desses anos, o maquinário mudou, mas as receitas continuam as mesmas. Domingos tem orgulho de dizer que preserva o modo de fazer do pai. “Não usamos nenhum tipo de conservante, aromatizante ou gordura hidrogenada. O sorvete de coco tem leite, leite em pó, açúcar e coco. Nada mais que isso”, fala, descrevendo o carro-chefe da sorveteria desde a abertura. O segredo, segundo ele, está em usar coco fresco, e não ralado. Dá mais trabalho, mas nada se iguala em sabor.
Juntando jabuticaba, água e açúcar, ele faz outra receita das antigas. Do mesmo jeito, produz o de maracujá, “que não encontra igual em outro lugar”, adicionando as sementes no fim do processo.
Tradição mantida
Ser antigo não significa parar no tempo. Domingos Dias Montenegro, a segunda geração da sorveteria São Domingos, não se descola da tradição, mas está sempre em busca de inovação para o negócio. “Sou aberto a mudanças, não gosto de ficar engessado, tanto que experimento outros sorvetes e procuro ideias em vários lugares”, avisa o empresário, que se prepara para trocar o sistema de limpeza das colheres de sorvete (fez pesquisas durante viagem recente para Portugal).
Em relação aos sabores, o herdeiro da marca criou, ao longo dos anos, alguns que estão entre os mais vendidos, como chocolate africano (mais intenso), pistache e abóbora com coco. O mais recente, que mistura morango e chocolate meio amargo, ganhou o nome de morango europeu. Na última ida a Portugal, ele experimentou sorvete de romã e se inspirou para criar mais uma receita.
De 10 anos para cá, a família vem investindo na produção de leite para fabricar os sorvetes. “Tenho vacas da raça jersey, que dão leite com um teor de gordura um pouco maior do que existe no mercado.” Vêm também da fazenda em Belo Vale frutas como jabuticaba e o doce de leite artesanal.
“Fico satisfeito de saber que continuei a história do meu pai, mantendo o mesmo padrão, e contribuí para manter essa tradição em BH. São poucos que continuam. Tem hora que desanima, mas sou muito persistente. Fico uns 10 dias fora e volto com a bateria renovada”, diz Domingos, que se diverte ao contar que é reconhecido na rua como o dono da São Domingos.
Ele também fica feliz de saber das histórias, muitas de amor, que envolvem a sorveteria. Lá era um antigo conhecido ponto de paquera e pedidos de namoro e noivado. Muita gente firmou compromisso tomando sorvete. Até hoje é assim, na verdade. Um casal jovem que começou a namorar naquela esquina sonha em se casar dentro da sorveteria, com padre e tudo. “Vai ser uma confusão, mas uma confusão boa.”
Ficou marcado também o caso em que eles organizaram uma complexa logística para enviar de avião sorvete para Foz do Iguaçu, no Paraná. O pacote fez escala em São Paulo e ficou algumas horas no freezer até embarcar para o destino final. Tudo para que um paranaense pudesse fazer uma surpresa de aniversário para a namorada mineira, que era fã da São Domingos.
Domingos não pensa em se aposentar tão cedo, o que não significa que já não pense na sucessão. Seus filhos seguem carreiras em outras áreas, mas, no futuro, espera que se envolvam em paralelo com o negócio da família, como ele faz (o empresário divide seu tempo entre a São Domingos e o trabalho como advogado). “Tenho um filho que é bom em administração e outro bom em culinária, então acho que formam uma boa dupla para prosseguir com a sorveteria.”
Tortinha de maçã com sorvete de creme (Sorveteria Universal)
Ingredientes
1 pacote de massa folhada; 5 maçãs; 5 colheres de sopa de açúcar; 1 limão; canela a gosto; 5 bolas de sorvete de creme
Modo de fazer
Corte a massa folhada no tamanho ou molde desejado. Coloque para assar em forno pré aquecido a 180° por cerca de 20 minutos. Para a calda, corte as maçãs em gomos finos e pingue um pouquinho de limão para não escurecer. Leve para a panela. Para cada maçã, coloque uma colher de sopa de açúcar e duas de água. Deixe ferver até engrossar. Disponha em um prato uma camada de massa folhada, uma bola de sorvete de creme e a calda de maçã. Polvilhe canela por cima.
Serviço
Sorveteria Universal (@sorveteriauniversal)
Avenida do Contorno, 1855, Floresta
Avenida dos Bandeirantes, 1299, Mangabeiras
(31) 99664-7201
São Domingos (@sorveteriasaodomingos)
Avenida Getúlio Vargas, 800, Savassi
(31) 3261-1720