A porta só ficava aberta durante o serviço. Ele chegou cedo e encontrou a passagem livre. Caminhou até a cozinha, com o currículo impresso na mão. Queria pedir emprego. Saiu de lá expulso pelos cozinheiros. Assim começou a promissora carreira de Gabriel Sodré, de 35 anos, na Europa. Pela ousadia, ele acabou entrando para o time do restaurante que “invadiu”, o Enigma, do aclamado chef Albert Adrià, em Barcelona, na Espanha. Há um ano sócio do Chispa Bistró, em Madri, recomendado pelo Guia Michelin, está perto de conquistar uma estrela.
A história de Gabriel prova que, para uma receita dar certo, não pode faltar uma porção generosa de ousadia. “Foi o que mudou completamente o meu caminho. Entrar nesse meio de estrela Michelin é difícil, o mercado é bem fechado, mas, depois que você entra, vai ficando conhecido pelo boca a boca”, analisa o chef, certo de que não foi contratado pelo currículo, mas pela atitude.
Gabriel estudou direito em Belo Horizonte, mas já sonhava com uma vida fora do Brasil. Em 2015, ele se mudou para a Nova Zelândia e, para conseguir o visto de trabalho, tinha duas opções: cozinha ou construção civil. “Consegui o visto como cozinheiro e me apaixonei pela profissão. Achei muito interessante a rotina, a pressão e estava empolgado com a ideia de estudar e crescer”, conta o mineiro, que teve um início de carreira incomum.
O chef acertou ao ouvir uma dica valiosa dos colegas: se você quer aprender, o melhor é rodar várias cozinhas, e não ficar em um lugar só. E foi o que ele fez na cidade de Tauranga. Saiu de um restaurante com comida mais simples para um hotel cinco estrelas e depois passou por um restaurante de alta gastronomia. “O chef de lá, bastante conhecido, me falou: você tem que sair aqui, vai estudar em um centro de gastronomia. Foi quando decidi vir para a Espanha.” O idioma pesou na decisão.
Em 2018, Gabriel desembarcou em Barcelona para estudar gastronomia. “A minha ideia era chegar ao nível dos melhores cozinheiros e, para conseguir, tinha que fazer um mega intensivo. Comecei o curso, que era super puxado, e fui, literalmente, batendo na porta dos restaurantes com o meu currículo”, relembra o chef, que, nessa época, já estava com 31 anos.
Uma semana depois de “invadir” o Enigma, ele ousou mandar uma mensagem para o chef, que respondeu na hora, dizendo que estava mesmo tentando contato por telefone, sem sucesso. “Chegamos à conclusão de que não podemos dar as costas para você. Nunca recebemos alguém com tanta vontade de estar aqui”, ouviu dele. Por um ano, o mineiro encarou uma rotina puxada, “à base de café”: estudava das 7h30 às 14h30 e tinha meia hora para estar dentro da cozinha do restaurante, onde trabalhava até 00h30.
Foi e voltou
Quando terminou os estudos, Gabriel foi convidado pela diretora da escola para uma vaga de estágio no El Celler de Can Roca, dos irmãos Joan, Josep e Jordi Roca, com três estrelas Michelin, que está entre os melhores do mundo. Em seis meses em Girona, diz que viveu “a melhor experiência profissional”, mas quis voltar para a cidade de Barcelona. Voltou também para o Enigma.
O retorno foi em janeiro do fatídico ano de 2020. Dois meses depois, pandemia, restaurante fechado, quarentena em casa e só dava para fazer alguns trabalhos administrativos. O chef, então, decidiu voltar para o Brasil e morar em BH por uns três meses, até a situação melhorar. Acabou ficando um ano e nesse período trabalhou com Leo Paixão. Gabriel chegou ao posto de subchefe e ajudou na reabertura do Glouton e na abertura do Ninita.
Seus planos mudaram novamente quando ele recebeu o telefonema de um colega da escola de gastronomia. O argentino Juan D'Onofrio fez a seguinte pergunta: vamos abrir um restaurante? “Foi a decisão mais difícil da minha vida. Era muito feliz trabalhando com o Leo Paixão, mas profissionalmente precisava dessa etapa. Tinha o sonho de tocar um projeto meu”, confessa.
Gabriel e Juan decidiram abrir o Chispa Bistró em Madri, que estava crescendo gastronomicamente no pós-pandemia. Tudo foi planejado do zero, desde a cor da parede até a posição exata do forno. Em três meses, de forma surpreendente até para eles, ganharam prêmio de melhor restaurante da cidade.
“Foi bem meteórico tudo o que aconteceu nesse primeiro ano. Desde o começo, tivemos um reconhecimento enorme. O projeto chamou muita atenção da crítica, por ser autoral, de dois chefs de fora, tanto que em dezembro fomos recomendados pelo Guia Michelin”, comenta. “Estou super feliz e orgulhoso de tudo o que conseguimos, mas é o primeiro passo de uma maratona.” Os sócios já estão de olho na primeira estrela Michelin.
Faísca de criatividade
Chispa em espanhol significa faísca. O nome se relaciona com o conceito do restaurante de duas formas: literal (eles trabalham com fogo e brasa) e subjetiva (guiam-se pela “faísca” da criatividade, de sempre buscar o novo). “Somos uma cozinha de autor aberta e internacional, que trabalha com produtos da temporada e serve pratos para compartilhar”, resume Gabriel.
O serviço tem uma proposta bastante inovadora. Pela apresentação, você diz que os pratos são individuais, mas todos são colocados no centro da mesa para compartilhar. A ideia é provar o máximo possível de itens do menu, tanto que o chef sugere de quatro a cinco pratos para duas pessoas. O cliente escolhe livremente o que quer comer e eles servem os pratos em sequência, com a lógica de um menu degustação. Mas não existe nenhuma imposição. Cada um decide como quer viver sua experiência.
Os chefs não fazem questão de explicar os pratos nos mínimos detalhes. Preferem que as pessoas sintam os sabores. Mas isso não anula a complexidade das criações, muito pelo contrário. A cozinha do Chispa Bistró tem um apuro técnico que impressiona.
Gabriel é quem cuida da parte criativa. Na hora de fazer um prato com berinjela, ele fugiu completamente do óbvio. Corta o legume em cubos e cozinha na brasa. Depois banha os cubos em creme de gergelim preto e decora com listras laranjas de redução de cenoura. Parece um bombom de chocolate. Completam o prato molho barbecue de alho negro com azeitonas pretas, molho de tomate e mostarda e babaganoush com as aparas do corte da berinjela, para não gerar desperdício.
“Esse prato tem acidez, defumado, gordura, doce e salgado. Trabalhamos com complexidade de sabores, sem perder a essência do produto. Quero que a pessoa saiba o que está comendo.”
Vale falar também do prato que tem como protagonista alface na brasa. Mas alface? Sim, acredite, ele não decepciona. Primeiro pela beleza, já que é todo em tons de verde. “Quando a pessoa lê a descrição, desmerece o prato a princípio, mas ele tem uma complexidade de sabores tão impressionante que virou uma das estrelas do menu.” A alface na brasa se junta a curry tailandês verde (com manjericão tailandês e coentro), óleo de manjericão e chutney de tomate verde.
“A ficha nem caiu”
Nessa conversa, em que faz uma retrospectiva da sua carreira, Gabriel se dá conta de que a ficha nem caiu de que chegou aonde queria: ser um chef reconhecido na Europa. “Superar as barreiras do idioma, da cultura e do preconceito por ser imigrante e conseguir ter um reconhecimento internacional é muito gratificante. Foi às custas de suor, lágrima e sangue.” Mas ele não se deixa levar por essa conquista, diz que tenta fazer o melhor trabalho possível todos os dias.
Daqui para frente, seu desejo, além de ver a evolução da cozinha do Chispa Bistró, é abrir outros restaurantes em Madri com uma comida “mais acessível”. Gabriel surpreende quando fala do seu objetivo em cinco anos: voltar para o Brasil. “Não me vejo morando para sempre na Europa. Quero voltar para perto da família e dos amigos e abrir em BH um restaurante espanhol com influência mineira”, revela.
Oui, tem frango com quiabo
O destino de Anna Alves, de 32 anos, foi traçado na frente da TV. A então adolescente de Ibirité, na Grande BH, estava assistindo a um reality show de gastronomia quando viu um participante transformar salsinha em pó. “Achei aquilo tão fascinante que falei: também quero fazer isso”, conta a mineira, que vive há 10 anos na França e hoje trabalha como chef do restaurante Rodizio Nice, no litoral da França.
Anna se formou em BH graças ao apoio financeiro de um conhecido da mãe. A família não tinha condições de bancar os estudos. Já formada, passou por restaurantes conhecidos da capital, como A Favorita e Domenico, onde ajudou a criar pratos como o risoto de abóbora com carne de sol e virou chef. Sua rápida ascensão acabou sendo motivo de alegria e sofrimento, pois a levou a um quadro de estafa.
A jovem saiu do emprego e, para que pudesse descansar de verdade, voou para a França, decidida a ficar 40 dias na casa de um primo em Paris. Pouco antes de voltar para o Brasil, ela resolveu entrar na escola de gastronomia do lado de onde estava hospedada. Não falava nada de francês, mas conseguiu a autorização para acompanhar as aulas. Em duas semanas, foi presenteada com uma bolsa para o curso completo de um ano.
Enquanto as aulas não começavam, Anna fez um intensivo de francês e emendou com um estágio em um restaurante, que virou emprego. No fim das contas, dividiu seu tempo entre o trabalho e os estudos.
Falando francês fluente e com o diploma de gastronomia, ela ganhou confiança para buscar outras oportunidades e rodar restaurantes. Até que, em maio deste ano, recebeu a proposta de assumir a cozinha do Rodizio Nice, na cidade onde gostava de passar férias. Nice é a cidade com mais brasileiros na França, por isso a aposta dos sócios (um francês e outro português) em comida brasileira. “Queria terminar a escola e voltar para o Brasil, mas isso está cada vez mais longe. Estou aqui para estabilizar o restaurante e criar outras casas iguais a essa.”
Pelo nome, dá para entender que a estrela da casa é o churrasco, mas, no almoço, eles servem pratos clássicos brasileiros. Aí Anna entra em casa. Para homenagear sua origem mineira, ela faz questão de servir frango com quiabo. “Amo de paixão esse prato. Sempre comi nos almoços de domingo.” A chef fez pequenos ajustes na receita da família, como marinar o frango com limão e fritar o quiabo à parte. Mas não abandona o refogado com alho do arroz branco, que entrega um sabor de Minas Gerais.
Está nos seus planos incluir no cardápio outras receitas de família, entre elas pão de queijo, coxinha e o bolinho de chuva da avó.
Anna confirma que está feliz e muito animada com a história que vem construindo como chef de cozinha. O que ela sempre quis foi dar orgulho para a mãe e a avó, mas seu reconhecimento acabou extrapolando fronteiras. “Além de ser mulher e brasileira, sou negra e venho de uma família humilde, então tinha tudo para não dar certo. Mas venci com muita força de vontade e trabalho duro. Sempre acreditei, independentemente da situação, que poderia dar o meu melhor.”
Polvo, repolho roxo, beterraba e laranja (Gabriel Sodré - Chispa Bistró)
Ingredientes
1 polvo; 1/4 de repolho roxo; 500ml de vinagre de maçã, 500ml de água; 150g de açúcar mascavo; 1/2 beterraba; 1 litro de suco de laranja; páprica defumada a gosto; 3 gemas de ovo; 50ml de suco de beterraba; suco de 1/2 limão; 200ml de manteiga derretida; sal a gosto
Modo de fazer
Cozinhe o polvo por 65 minutos em água fervendo. Corte e separe os tentáculos depois de cozidos. Corte o repolho em tiras de 2cm a 3cm. Em uma panela, ferva vinagre de maçã, água e açúcar mascavo. Cozinhe as tiras de repolho nessa mistura por 50 minutos. Corte a beterraba em cubos e cozinhe em suco de laranja. Finalize com páprica defumada. Em um bowl, bata bem as gemas de ovo e os sucos de beterraba e limão até que tenha uma mistura uniforme. Coloque o bowl sobre uma panela com água em ebulição (banho-maria). Incorpore a manteiga derretida aos poucos, batendo sem parar, até obter uma mistura com textura de maionese.