Belo Horizonte receberá, no próximo fim de semana, a sétima edição do Circuito Gastronômico de Favelas. O evento visa fortalecer a presença e influência dos cozinheiros das comunidades e suas singularidades. Nesta edição, 12 participantes levam diversidade de sabores e tradições para um fim de semana de festa no Bairro Serra. A entrada é gratuita.
Maria da Consolação de Souza, a Lia, de 54 anos, já é veterana. Moradora do Morro do Papagaio, na Região Centro-Sul de BH, ela é famosa pelo feijão-tropeiro que vende na comunidade, mas, nesta edição, resolveu inovar com um prato “exótico”: língua de boi recheada com arroz do campo (arroz branco servido com diversos legumes) e chips de batata.
Com afeto e muita experiência, Lia se satisfaz em alimentar o público “exigente” do Morro do Papagaio. “Tudo o que eu podia fazer para agradar e mostrar para o povo da favela que eles podiam comer igualzinho a um ‘rico’ em um restaurante eu fiz”, afirma.
Elogiada pelo chef Ivo Faria, a participante aprendeu a cozinhar há 15 anos por necessidade. “Minha mãe trabalhava fora e eu ficava em casa. Não tinha muito o que cozinhar, então eu fui juntando umas ‘coisinhas’ e aprendi a fazer um arroz com feijão bem temperado para os meus cinco irmãos”, conta.
Histórias como a de Lia impulsionam a culinária da periferia e levam sentido a uma gastronomia pautada no afeto e no pertencimento. Ela, que aprendeu a cozinhar com a “necessidade”, pode contar com grandes nomes da culinária mineira para aprimorar seu trabalho e trocar experiências.
Os cozinheiros, desde a primeira edição, em 2017, trocam experiências com renomados chefs, respeitando a liberdade criativa e o modo de fazer de cada um. Neste ano, Américo Piacenza (Cantina Piacenza), Edson Puiati (Senac), Flávio Trombino (Xapuri), Márcia Nunes (Dona Lucinha), Cristóvão Laruça (Caravela, Turi e Capitão Leitão) e Luiza Pimentel (Uluru Café) auxiliaram os participantes na construção e apresentação das receitas.
Memórias em família
Moradora da Vila Estrela, na Região Centro-Sul da capital, a chef Luana Andrade, de 42 anos, participa pela primeira vez do Circuito Gastronômico de Favelas. Formada em gastronomia, vai preparar um prato inspirado em suas memórias afetivas. Chamado por ela de “Trio da Lua”, tem tiras de frango empanado com farinha panko e especiarias, batata baby na conserva e geleia de pimenta.
“A minha mãe fazia lá em casa frango em tiras para render mais, e nas festas de família, sempre teve essa batata, desde a época da minha avó, e todo mundo adora”, explica. Segundo ela, a comida é o ingrediente principal de todas as reuniões na Vila Estrela. A regra é clara: encontrou, tem que ter comida.
Antes de se dedicar à produção de geleias e conservas em sua casa, Luana trabalhou em restaurantes, onde foi discriminada por ser uma mulher negra preta e periférica atuando como chef de cozinha. “Eles acham que, por eu ser uma mulher negra, eu tenho que estar sempre abaixo, uma copeira, uma auxiliar, uma faxineira, nunca a chef de cozinha”, reflete.
Luana também relatou ter enfrentado diversos desafios durante o curso de gastronomia.
Torresmo de barriga
Se com um limão é possível fazer uma limonada, com um torresmo de barriga a Lora fez sucesso no Barreiro. Aparecida Maria de Almeida aproveitou a crescente industrialização e a chegada de diversas empresas na Vila Pinho para popularizar sua comida de raízes mineiras. Proprietária do Bar e Restaurante da Lora, ela alimenta os trabalhadores que precisam almoçar na região.
Cozinheira há 25 anos, Lora aprendeu o ofício observando a avó trabalhar em restaurantes. No Circuito Gastronômico de Favelas, vai apresentar seu torresmo de barriga, servido com limão e pimenta biquinho. Para fazer o prato, ela retira a pele do porco, corta a carne em pedaços e cozinha em sua própria gordura até atingirem uma textura crocante e saborosa.
As comidas terão preço único de R$ 20 (pratos) e R$ 15 (pastel e doces).
Cozinha profissionalizante
Em BH, as comunidades atendidas são Aglomerado da Serra, Alto Vera Cruz, Pedreira Prado Lopes, Vila Maria Santa Tereza, Barreiro e Morro das Pedras, novidade desta edição. “Os participantes que fazem a curadoria. Então, você pode ver que os pratos são bem variados, com nomes personalizados. Tudo é criado por eles”, conta a idealizadora do circuito, Danusa Carvalho. O projeto também já passou por Betim e Contagem.
A idealizadora aproveitou para falar sobre novos projetos para a gastronomia de favela em BH. “O nosso próximo passo, em 2024 é, não só fazer o circuito gastronômico, como também criar uma cozinha de cidadania, onde a gente possa dar estrutura profissional para que esses cozinheiros criem produtos e atendam à demanda do mercado.”
O que comer
Veja a lista de pratos e cozinheiros.
Feijoada Senzala – Dirce, do Alto Vera Cruz
Lanceta – Lora, do Barreiro
Língua recheada com arroz do campo e banana chips – Lia, da Barragem Santa Lúcia
Pastel Trem de Minas – Diones, do Barreiro
Trio da Lua – Luana Andrade, da Vila Estrela
Suado Ancestral – Vanessa, do Beco
Empadão do Rei – Romney Batista, do Morro das Pedras
Frango com pó de quiabo – Wanusa, do Morro do Papagaio
Peixe frito com molho de alho-poró e vinagrete – Isaías, da Vila Conceição
Paella Caipira – Adriana (Dri) de Moura, da Vila Conceição
Bombons e tortas diversas – Alê Lucia, da Vila Aparecida
Embolado Berrante – Marlene, do Taquaril
Programação cultural
O Circuito Gastronômico de Favelas começa no Dia Nacional do Samba, comemorado em 2 de dezembro. Por isso, no sábado, vai contar com roda de samba da banda Delegas Samba Clube, comandada por Thiago Delegado e convidados. No domingo, o samba fica a cargo de Manu Dias e Dé Lucas, morador da comunidade da Serra e pai do ator Cícero Lucas, protagonista do filme “Marte Um” (o longa será exibido gratuitamente no sábado, às 18h30). O evento ainda faz uma homenagem a Rudney Carvalho, cavaquinista que faleceu em outubro e se apresentou em todas as edições. Os DJs Zubreu e Joca se revezam na discotecagem nos dois dias de evento.
Língua recheada com linguiça calabresa, arroz do campo e chips de batata
Lia (Barragem Santa Lúcia)
Ingredientes
1,5kg de língua de boi recheada com linguiça calabresa; 3 cebolas brancas picadas; 5 tomates sem pele e sem semente picados; 3 pimentões (1 verde, 1 vermelho e 1 amarelo); 10 dentes de alho; 2 tabletes de bacon; louro; 1 cálice de vinho tinto seco; sal e pimenta a gosto; 6 bananas-caturras
Modo de fazer
Limpe, recheie e tempera a língua com alho e cebola e reserve. Em uma frigideira untada com óleo bem quente, passe a língua para fritar levemente, selando-a. Em uma panela de pressão, coloque a língua, o alho, a cebola, o tomate, os tabletes de caldo de bacon e o vinho. Acrescente água até cobrir e cozinhe na pressão por 40 minutos. Acrescente os pimentões e deixe ferver até o caldo ficar bem encorpado. Descasque as bananas e pique em rodelas. Frite as rodelas de banana em uma frigideira com óleo quente e seque-as em uma travessa com toalha de papel para retirar o excesso de óleo. Fatie a língua e sirva com arroz de legumes e chips de batata.
Serviço
Circuito Gastronômico de Favelas
Data: 2 e 3 de dezembro
Horário: 12h às 20h (sábado) e 12h às 18h (domingo)
Local: Rua da Passagem, Serra
Entrada gratuita
*Estagiária sob supervisão da subeditora Celina Aquino