De lugar esquecido a destino gastronômico. O hipercentro de Belo Horizonte vem atraindo cada vez mais público com a abertura de bares e restaurantes no último ano. Além de dar nova vida a imóveis históricos, o movimento de (re) ocupação da região central da cidade direciona os olhares de moradores e turistas para áreas até então esquecidas.
Muito do que se vê hoje no Centro se deve ao que aconteceu dentro do Mercado Novo. Em 2017, três jovens abriram a Cervejaria Viela, seguida pelo restaurante Cozinha Tupis, no segundo andar do centro comercial, que estava praticamente vazio e abandonado. A partir daí, o espaço entrou para a cena gastronômica da cidade, com todas as lojas ocupadas. Depois da expansão para o terceiro andar, o movimento ultrapassou os muros do mercado e inspirou outras iniciativas na região central.
“Isso tem tudo a ver com o que aconteceu em todos os outros lugares do mundo, de levar o movimento gastronômico, cultural e turístico para o coração da cidade”, aponta Vitor Veloso, sócio do bar Pirex, aberto há um ano na Galeria São Vicente, na esquina com a Avenida Amazonas, com vista da varanda para a Praça Raul Soares e o Edifício JK, de Oscar Niemeyer.
Vitor já frequentava bastante o entorno da praça. Todo fim de semana, dava uma passada no seu bar predileto, o Zé Luiz – segundo ele, símbolo da boemia de BH. Ele também tinha ligação com aquela região por causa do carnaval de rua, como compositor de marchinhas. Fora isso, sempre gostou de levar turistas para o hipercentro, que costuma ser ignorado pelos guias, mas que é fundamental para entender a história da cidade.
Quando decidiu levar adiante o plano de ter um bar (depois de entrar para a gastronomia com o restaurante Pacato), não teve dúvida de que seria no Centro. Mas tinha que ser uma proposta que respeitasse a cultura alimentar da região. Por isso, a escolha da estufa, muito presente em bares centrais, com uma enorme variedade de petiscos quentes e frios. Pirex é justamente o nome do vasilhame onde as comidas ficam em uma estufa.
Pelo mesmo motivo, lá só tem cerveja de garrafa de 600ml. Outra boa pedida para se ambientar é a batidinha de coco, também servida no copo lagoinha, ícone do Centro de BH. Inclusive, o copo mais belo-horizontino de todos preenche uma parede inteira do bar.
O cardápio foi pensado para fortalecer o caráter regional da gastronomia do bar, evidenciando uma série de elementos que estão presentes nos bares da região. Entre as opções, terrine de fígado de galinha, lombo com abacaxi e provolone, vinagrete de coração de galinha, quiabo com bacon e moela com molho de tomate. O pão molhado, coberto com molho de tomate defumado, queijo ralado e cebolinha, é inspirado na ideia de “limpar” o prato com pão. Os clássicos “sacanagem” e “capetinha” também aparecem – são espetinhos de salsicha com azeitona e mortadela com legumes.
Território familiar
Para Vitor, a ocupação do Centro com iniciativas como o Pirex aproximam os moradores da cidade de uma área até então pouco lembrada. “A desconfiança inicial típica do mineiro caiu por terra. O Centro já é território familiar para as pessoas de todas as regiões, desde o morador da Zona Sul que está procurando novidades até o botequeiro de raiz acostumado a frequentar bares dali. Isso ajuda a fortalecer a diversidade”, comenta.
Mesmo ouvindo, no início, que era louco de abrir um bar “com vista para a pobreza”, Vitor bateu o pé. Foi muito firme em defender que não temos que tapar os olhos para os problemas da cidade, pelo contrário. Essa presença acaba atraindo mais atenção e cuidado para a região.
“Quando a população enxerga o coração da cidade, com a sua realidade nua e crua, entende que não tem que cuidar só da sua rua, tem uma cidade inteira para cuidar. E isso gera mais visibilidade para quem está em situação de vulnerabilidade”, defende. Aos domingos, quando tem samba, o bar costuma pedir a doação de alimentos não perecíveis para ajudar uma instituição que apoia pessoas em situação de rua.
Vitor pensa em levar outros projetos gastronômicos para o Centro. Já estudou, inclusive, outros pontos. Mas acredita que o movimento vai se fortalecer com mais pluralidade, quando mais empreendedores se voltarem para a região. “Uma andorinha só não faz verão”, aponta. “Mais importante do que a nossa expansão é encontrar mais pessoas para se inspirar e vir na mesma direção. E assim vamos mudando a cara da cidade.”
Casarão de esquina
Alfredo Lanna vem seguindo a mesma direção. Há um mês, inaugurou o Babel, também na Praça Raul Soares. Já tinha um tempo que ele pensava em abrir um negócio no hipercentro e sempre passava por lá, mapeando possíveis imóveis. Até que olhou com outros olhos o casarão abandonado, na esquina com a Avenida Bias Fortes, onde havia funcionado o restaurante Scaramouche, que teve seu auge nos anos 1970 e 1980.
O imóvel estava fechado havia seis, sete anos. Não restava nem mais um fio. Alfredo e os sócios se apaixonaram tanto pela varanda do segundo andar, com balaústre de madeira, lustres antigos e vista para a praça, que decidiram encarar uma reforma completa. Eles anexaram o imóvel ao lado, do mesmo dono, que já abrigou o Espaguetolândia, o que totaliza 650 metros quadrados e 320 lugares. “Demolimos o telhado, construímos a laje e deixamos uma área totalmente aberta com uma árvore no meio. A ideia é aproveitar mais o segundo andar. Belo-horizontino gosta de lugar aberto.”
O nome Babel vem da proposta de, por estar no Centro, ser o boteco de todas as línguas, ou seja, que junta pessoas de todos os lugares e tribos. Na noite de uma quinta-feira, isso se comprovou facilmente. Executivos, senhoras, jovens e casais escolheram se divertir na região central da cidade. Alfredo está surpreso com a repercussão do negócio, que tem ficado cheio todos os dias e no fim de semana tem fila de espera.
Não só no salão, mas na cozinha trabalha-se a ideia de pluralidade. Assinado pelo chef Daniel Pantuzzo, o cardápio reúne ingredientes e receitas de várias origens. Toda quinta, chegam ostras de Santa Catarina, servidas in natura ou com coulis de manga e azeite de basílico. O inglês fish and chips (acrescido de molho de iogurte com erva-doce) convive com o bolinho de galinhada com molho de pimenta cumari, inspirado no italiano arancini. Enquanto o vinagrete de polvo e lula entrega o frescor do mar, as bolinhas fritas revelam sabores do cerrado no recheio cremoso de embutidos.
A carta de drinques rende homenagens ao Centro da cidade. O Scaramouche, por exemplo, faz referência ao restaurante que fez história naquele ponto, combinando cachaça, martini rosso, campari, caju e abacaxi. Já o Raulzona, uma brincadeira com o nome da praça, mescla limão capeta, xarope de cranberry, maracujá e espuma de coco com vodca, rum ou cachaça.
Manhã, tarde e noite
Mais para frente, além de oferecer petiscos, a casa deve abrir com café da manhã (em vez de brunch, opções como misto quente, que têm mais a cara do Centro), almoço e jantar.
Como arquiteto e urbanista, Alfredo vinha acompanhando a tendência de retomada do Centro nas grandes cidades e sabia que um dia chegaria a BH, o que ele considera muito benéfico. “Ainda existem muitos espaços sem ocupação, imóveis parados há muito tempo. Isso é muito importante para a cidade, que não tem mais para onde expandir. Fora que o lugar onde tem mais estrutura e logística para clientes e colaboradores é o Centro da cidade”, destaca o sócio da Pizzaria Panorama e do Botequim Sapucaí (ambos na Rua Sapucaí), além da casa de shows Autêntica e da fábrica da Cervejaria Vinil.
O que falta, na visão dele, é mais investimento em segurança pública. “Meu sonho é que as pessoas possam sair do Mercado Novo, passar pela Praça Raul Soares, ir ao Maletta, chegar à Praça da Estação, tudo a pé. Temos um circuito gastronômico muito interessante para oferecer aos turistas.”
Ao lado da estação
Outro ponto central da cidade, a Praça da Estação, tem atraído novos negócios de gastronomia. Muitos se concentram no Edifício Central, que abriga o bar Baixaria, inaugurado há três meses. A iluminação em rosa neon faz com que a varanda do terceiro andar seja vista de longe. De dentro para fora, o público tem uma visão privilegiada da praça, da Rua Sapucaí e até da Serra do Curral.
André Oliveira e Antônio Mello estavam procurando um ponto para abrir um negócio. Na época, só havia dois negócios de gastronomia no prédio. “Os donos do bar O Boêmio tinham começado havia pouco tempo, estavam muito entusiasmados e isso despertou a minha curiosidade. Fui andando pelo prédio, vi que estava subaproveitado, muitas lojas vazias e comecei a enxergar um potencial que até então não tinha percebido”, relembra André.
Ali, na época da construção de BH, era um grande armazém que abrigava produtos desembarcados na Estação Central. Ou seja, estamos falando de um imóvel histórico e emblemático.
Baixaria faz referência ao “baixo Centro”, onde está localizado o bar. Também se relaciona com a proposta de ser um lugar livre, que recebe bem tudo e todos.
Os sócios optaram por construir uma cozinha aberta, cercado por um balcão de 13 metros de comprimento. “A área do Centro é muito estigmatizada por ser 'copo sujo'. Quando falava que vinha para cá, todo mundo torcia a cara, falando que a Praça da Estação era mal frequentada. A nossa ideia, com a cozinha aberta, é desmistificar isso, mostrar que aqui é um lugar limpo e organizado”, justifica.
Da cozinha, chefiada por João Salles, saem petiscos de estufa com elementos gastronômicos típicos de bares belo-horizontinos. Você pode encontrar invenções como Beijo grego com final feliz (rabada, língua de boi, rabinho de porco, farofa e torrada), Traça tudo (cupim desfiado com batatas bolinha cozidas) e Bolado (bolinho de costelinha com chutney de goiabada).
A chef Carolina Dini recebeu a missão de criar petiscos criativos e saborosos com vegetais. “A ideia era sair da batata e da mandioca frita. Os vegetarianos sentem falta de sentar para tomar uma cerveja gelada e encontrar uma comida que foi pensada e que vai satisfazê-los.” Jiló empanado em panko com molho de alho-poró, umbigo de banana desfiado e refogado com pimentões e tomates e pão de sal com cogumelos são algumas das opções.
O bar está, literalmente, no centro do Baixaria. Entre os drinques autorais, o campeão de vendas batizou é o Tesão, com cachaça de jambu, limão siciliano, melado de cana e gengibre cristalizado no mel.
Fila de espera
Constantemente, André é abordado por pessoas perguntando se tem loja para alugar no Edifício Central. E há cada vez menos espaços disponíveis. Ele mesmo se prepara para abrir, até março, uma segunda operação no prédio, a cervejaria Clube Ferroviário, inspirada na estação de trem em frente. “A casa abriu na Virada Cultural, ficou muito cheia e o movimento nunca mais diminuiu. Chegamos a ter 30, 40 pessoas na fila querendo entrar”, aponta, apostando que a expansão vai atender à demanda excedente.
Enquanto isso, o empresário aguarda, com muita expectativa, a revitalização do hipercentro, com o projeto Centro de Todo Mundo, lançado pela Prefeitura de Belo Horizonte. As obras na Praça da Estação já começaram. André defende que a região merece mais atenção do poder público, que, em conjunto com os novos negócios, pode afastar o preconceito que ainda ronda esse ponto da cidade.
Nova ocupação
O espaço CentoeQuatro, na Praça Rui Barbosa, estava esperando um negócio que valorizasse seu passado para voltar a ser ocupado. Isso porque o dono só aceitou alugar o imóvel quando conheceu a proposta do bar Montê, aberto há três meses, que tem nome, decoração e cardápio inspirados na história de Belo Horizonte.
Pedro Lobo, um dos sócios, conta que sempre teve um carinho pelo prédio – construído em 1906 para abrigar a primeira fábrica da cidade – e nem considerou outro lugar na hora de abrir o bar. “De uns tempos para cá, tenho acompanhado o movimento no Centro, que começou com o Mercado Novo, trazendo o olhar de empresários e principalmente desmistificando a ideia de que é um lugar perigoso. Isso acontece no mundo todo e era inevitável que aconteceria em BH.”
Montê vem da palavra montanhês, que tem sua origem na expressão “povo das montanhas”, como os belo-horizontinos eram conhecidos. Montanhês também era o nome do cabaré na Rua dos Guaicurus frequentado por Hilda Furacão. Assim como o bairro Santa Tereza é carinhosamente chamado de Santê, montanhês virou Montê. A decoração remete à arquitetura original do imóvel tombado, como formas que lembram os arcos das janelas e detalhes de inspiração francesa (assim como a praça onde está).
O cardápio também traz essa mistura ao propor uma cozinha mineira com técnicas francesas. Para isso, o chef Victor Zuliani buscou referências de bares tradicionais de BH. Por exemplo, faz uma homenagem ao Café Bahia com o bolinho de carne com vinagrete de tomate verde e maria gondó. Ele também evidencia ingredientes de Minas em pratos como o tartar de carne de sol de Montes Claros com maionese de erva-doce, servido na barquete clássica.
“Acho muito legal essa vinda para o Centro. Aqui tem espaços lindos, tombados pelo patrimônio, que merecem ser ocupados”, aponta o chef, que não teve dificuldade nenhuma em montar a equipe. Por ser em um ponto, o deslocamento fica bem mais fácil.
Para acompanhar as comidinhas, há criações do mixologista Felipe Brasil, como o Caramelinho (vodca, caramelo queimado e maracujá). Foi dele a ideia de reuniu drinques de 10 bares da cidade, entre eles Loira do Bonfim, de Conrado Salazar, do Bença Bençoi (gim, limão capeta, geleia de jabuticaba e água tônica) e Calma Nervo, de Albert Coelho, da Cachaçaria Lamparina, cachaça com jambu, licor de pequi, limão capeta e tônica.
Nas redes sociais, há muitos questionamentos sobre segurança, o que demonstra que ainda existe um receio da população de ocupar o Centro de noite. Mas quem conhece o bar acaba voltando. Os sócios tentam mudar essa ideia mostrando que a região está sendo revitalizada, que o policiamento tem sido reforçado e que tem cada vez mais gente interessada em investir lá. “Muitos empresários do ramo entram em contato comigo querendo opinião, saber se vale a pena. Quanto mais coisas legais tivermos aqui, melhor para todo mundo, principalmente para a cidade.”
Outro negócio dos sócios do Montê no Centro está perto de se concretizar. Previsto para o primeiro semestre do ano que vem, será em um prédio projetado por Oscar Niemeyer.
Palitos de mandioca com queijo canastra e maionese de limão-capeta (Chef Vitor Zuliani - Montê)
Ingredientes
2kg de mandioca descascada; 200g de manteiga; 200g de polvilho azedo; 500ml de água; sal a gosto
Modo de fazer
Rale a mandioca. Misture com o polvilho, a manteiga, a água e o sal. Disponha em um tabuleiro. Espalhe uniformemente e asse por 1h30 a 150 graus. Após assado, deixe esfriar completamente e retire do tabuleiro. Corte no formato que quiser e frite em óleo quente por imersão. Polvilhe queijo canastra ralado por cima. Os palitos de mandioca podem ser servidos com maionese de limão-capeta ou qualquer outro molho da sua preferência.
Serviço
Pirex (@barpirex)
Avenida Amazonas, 1073 – loja 54
Babel (@babelrestaurante)
Avenida Bias Fortes, 1160
Baixaria (@baixariabh)
Avenida dos Andradas, 367 – loja 334
(31) 98837-8118
Montê (@monte.beaga)
Praça Rui Barbosa, 104
(31) 98309-7265