Em Caracas, na Venezuela, Cordero desponta com trabalho voltado para a carne de cordeiro
 -  (crédito: Latin America's 50 Best Restaurants/Divulgação)

Em Caracas, na Venezuela, Cordero desponta com trabalho voltado para a carne de cordeiro

crédito: Latin America's 50 Best Restaurants/Divulgação

Rio de Janeiro - O Brasil não está sozinho no esforço de identificar e evidenciar sua identidade na gastronomia. Esse também é o caminho de outros países bem colocados na lista do 50 Best Restaurants América Latina, revelada, na última semana, em cerimônia no Rio de Janeiro. Chefs de casas que estão entre as 50 melhores da região falam sobre a importância de valorizar ingredientes, técnicas e tradições de suas localidades através da comida.

À frente do Maido, em Lima, capital do Peru, eleito o número 1 da lista, Mitsuharu Tsumura é um entusiasta dos ingredientes locais. Na opinião dele, a força da cozinha latino-americana está na matéria-prima, que é única e resulta em sabores que só se encontram na região. Por isso, acredita que esse é o caminho para a América Latina se firmar no mapa do mundo.

Micha, como é mais conhecido, nasceu no Peru, mas vem de uma família de origem japonesa. Depois de passar uma temporada em Osaka, no Japão, voltou para Lima e abriu o restaurante de cozinha nikkei (uma mistura dos dois territórios). Mas, segundo ele, sua cozinha está cada vez mais peruana e menos japonesa. Isso porque tem direcionado seu trabalho para os produtos locais, criando menus que passeiam por diversas regiões do país.

À frente do Maido, no Peru, Mitsuharu Tsumura e Florencia Rey comemoraram o primeiro lugar na lista e o prêmio de melhor sommelier

À frente do Maido, no Peru, Mitsuharu Tsumura e Florencia Rey comemoraram o primeiro lugar na lista e o prêmio de melhor sommelier

Latin America's 50 Best Restaurants/Divulgação


“Shoyu, missô, nori e outros ingredientes japoneses estão nas cozinhas de todo o planeta, não são estranhos para ninguém. Considero que o futuro da América Latina não depende só de abrir restaurantes pelo mundo, mas levar os nossos ingredientes para outras cozinhas”, aponta o chef, que já venceu o prêmio em três edições passadas consecutivas (de 2017 a 2019).

Há 20 anos, relembra Micha, os peruanos não conheciam verdadeiramente sua cozinha e acabavam privilegiando ingredientes importados. Essa virada, além de ser a base da evolução da gastronomia do Peru, que ganhou reconhecimento mundial, gera um sentimento de orgulho.

O restaurante não trabalha exclusivamente com ingredientes peruanos. O chef diz que faz parte do continente como um todo e prefere não delimitar uma divisão entre os países. “Fazemos uma busca constante por insumos, não só comestíveis, mas saborosos”, conta. No momento, Micha tem usado muitos produtos amazônicos (pensa, inclusive, em montar um centro de pesquisas dentro da floresta). Foi no Brasil que ele comeu tucupi pela primeira vez.

O Maido ficou ainda mais em evidência ao ganhar um dos prêmios especiais da noite. Florencia Rey foi eleita a melhor sommelier da América Latina.

Diferentes biomas

No restaurante Leo, em Bogotá, número 8 da lista, Leonor Espinosa narra histórias de uma Colômbia pouco conhecida. Para isso, trabalha com ingredientes de regiões de difícil acesso, que não são encontrados facilmente nos mercados, mas que representam diferentes biomas do seu país. Como exemplo, arrechón (bebida afrodisíaca à base de licor de ervas) e bijao (folha parecida com a de bananeira).

Leia: 50 Best: Brasil tem oito restaurantes na lista dos melhores da América Latina

“Antigamente, os turistas não enxergavam a gastronomia da Colômbia porque não havia restaurantes com comida local. Outras culturas dominavam, como francesa e italiana. Com o tempo, fomos mostrando que o nosso país pode ser reconhecido pela gastronomia local”, aponta Leonora, que veio a Belo Horizonte em outubro para a Bienal da Gastronomia.

Em 2008, ela fundou a organização sem fins lucrativos Funleo, como forma de preservar tradições gastronômicas de comunidades colombianas.

Cozinha amazônica

Todos os ingredientes usados no Gustu, em La Paz (Bolívia), que chegou ao 23º lugar, são amazônicos. Para a chef Mársia Taha, não há como seguir outro caminho, já que a maior parte do país é coberta pela floresta.

Com o projeto Sabores Silvestres, eles viajam por regiões remotas para identificar e registrar produtos endêmicos e técnicas ancestrais, além de desenvolver relacionamentos com pequenos produtores e apresentar ao público sabores desconhecidos. “O projeto alimenta o restaurante com inspiração e ingredientes”, resume Mársia. Ao se sentar na mesa do restaurante, você pode conhecer de carne de jacaré a chibé (receita muito parecida com a nossa farofa, à base de farinha de mandioca). 

“A Bolívia tem um potencial enorme para ser um destino gastronômico e nós cozinheiros temos a responsabilidade de trabalhar para isso”, comenta. Entre tantas conquistas que envolvem o prêmio, a chef fala que o que mais interessa é dar visibilidade ao seu país.

Por acreditar que a comida tem o poder de mostrar quem somos, o Sublime, na Cidade da Guatemala (Guatemala), número 24 do ranking, vai a fundo nas origens da Guatemala. As criações dos pratos são conduzidas pela criatividade do chef Sergio Díaz e o conhecimento histórico da antropóloga Jocelyn Degollado.

Os menus fazem uma viagem pela história do país, desde os antigos maias, passando pelos colonizadores espanhóis até chegar aos tempos atuais, com reflexões sobre o futuro. Entram os ingredientes mais significativos de cada época.

Os sócios participaram de um talk no dia anterior à premiação e, em um momento de interação com a plateia, serviram um prato para que todos pudessem sentir o que falavam. Tinha melancia, atum, cebola, coentro, sementes de abóbora, limão, farofa e flores comestíveis.

Cabrito com cerveja

Por falta de opção, o chef Guillermo González Beristáin foi obrigado a sair do México para estudar gastronomia e se formou nos Estados Unidos. Trouxe de volta técnicas francesas, mas nunca tirou os olhos dos produtos locais. Tanto que seu restaurante Pangea, em Monterrey, que em 2023 aparece na 29ª posição, faz parte da lista desde a primeira edição, como um representante de destaque da cozinha mexicana contemporânea. Ele ainda ganhou o prêmio de hospitalidade.

Janaina Torres Rueda subiu ao palco duas vezes: venceu como melhor chef mulher e recebeu o prêmio pelo 4º lugar de A Casa do Porco

Janaina Torres Rueda subiu ao palco duas vezes: venceu como melhor chef mulher e recebeu o prêmio pelo 4º lugar de A Casa do Porco

Marcus Steinmeyer/Divulgação


Seu prato icônico tem carne de cabrito, que está sempre presente nos churrascos dos mexicanos daquela cidade. “Assamos o cabrito inteiro, cortamos em seis ou oito partes, tiramos os ossos, prensamos e servimos em quadrados”, descreve. O molho de cerveja não está ali por acaso. Monterrey é a cidade do México que mais consome a bebida e Guillermo é dono de uma cervejaria, a Bocanegra.

Inaugurado em 2022 na Cidade do Panamá (Panamá), o Cantina del Tigre já foi notado pelo 50 Best. Além de aparecer em 25º lugar no ranking da América Latina, foi considerado a maior novidade do ano. Chama a atenção o trabalho de reinventar pratos tradicionais do país. Uma das especialidades é o ceviche, servido em várias versões (o mais famoso é o de lichia).


Feliz com o resultado, o chef Fulvio Miranda, que começou sua carreira na cozinha com um food truck de hambúrguer, quer mostrar seu país para o mundo como um destino gastronômico e fazer com que os visitantes conheçam a cultura real dos panamenhos.

“Faz 20 anos que começamos a entender a nossa gastronomia, que vem de uma mistura, na época da construção do Canal do Panamá. Na tentativa de reencontrar essa origem, entendi que a mistura de Caribe e Ásia nos torna autênticos”, destaca o chef, que define sua cozinha como afrocaribenha e chinesa. Na história pessoal de Fulvio, o Brasil (especificamente Belo Horizonte) tem um significado importante: seus pais se conheceram em terras mineiras.

De olho neles

Entre os prêmios especiais distribuídos pelo 50 Best América Latina, o “One to watch” aponta restaurantes que ainda não entraram na lista, mas estão em ascensão e têm grandes chances de aparecer na próxima edição. Então, é bom ficar de olho no Cordero, de Caracas (Venezuela), fundado em 2022 e já reconhecido como um símbolo da gastronomia do país.

Eleito o melhor restaurante da Bolívia, Gusto desenvolve projeto para identificar e registrar produtos endêmicos e técnicas ancestrais do país

Eleito o melhor restaurante da Bolívia, Gusto desenvolve projeto para identificar e registrar produtos endêmicos e técnicas ancestrais do país

Marco Antônio Teixeira/Divulgação


O restaurante só trabalha com cordeiro, da entrada à sobremesa. O chef Issam Koteich e seu sócio, Pedro Khalil, também estão à frente do Proyecto Ubre, fazenda a cerca de 40 minutos de Caracas, onde criam as ovelhas, garantindo rastreabilidade e frescor aos insumos.

Das 10 edições do 50 Best América Latina, nove colocaram o Peru no topo da lista. O Central, em Lima, dos chefs Virgílio Martínez e Pia León, ficou em primeiro lugar em 2022 e neste ano ganhou o título de melhor restaurante no ranking mundial (o primeiro sul-americano a ter essa conquista). Com isso, entrou para o seleto grupo dos “Best of Best” e se tornou inelegível.

O Peru se manteve no topo da lista, mas não é o país com mais restaurantes indicados. O México venceu nesse quesito, com 11 representantes (são nove peruanos). Brasil e Argentina ficaram empatados, com oito cada. Cinco restaurantes da Colômbia tiveram destaque, enquanto Panamá e Guatemala entraram com dois. Costa rica, Chile, Equador, Bolívia e Uruguai têm um único representante.

Brasil mostrou a sua cara

Apesar de o número de restaurantes brasileiros ter caído de 10 para oito, o Brasil teve destaque nesta edição do 50 Best América Latina. A começar pelo fato de ter sediado a cerimônia de premiação pela primeira vez na história, nos salões luxuosos do hotel Copacabana Palace, no Rio de Janeiro. Além disso, ganhou dois prêmios especiais.


Janaina Torres Rueda foi a grande estrela da noite pelo Brasil. Subiu ao palco duas vezes, com a sua já conhecida bolsa com a bandeira brasileira, que praticamente virou um amuleto. Primeiramente, recebeu o troféu de melhor chef mulher do ano. “Muito obrigada ao Rio de Janeiro, essa cidade maravilhosa, por estar recebendo o prêmio no meu país. Viva o Brasil.”

Prato mais famoso do A Casa do Porco, Porco San Zé tem carne assada por oito horas e acompanhamentos tipicamente brasileiros

Prato mais famoso do A Casa do Porco, Porco San Zé tem carne assada por oito horas e acompanhamentos tipicamente brasileiros

Mauro Holanda/Divulgação


Depois, voltou a ser premiada, ao lado de Jefferson Rueda, quando A Casa do Porco foi anunciado como o melhor restaurante do Brasil na lista. Ficou em 4º lugar, a mesma posição do ano passado. “A minha cozinha é focada em ingredientes brasileiros. Trabalhamos com a carne de porco, porque somos criadores de porcos”, comentou. Os chefs também administram um sítio que abastece o restaurante com frutas, verduras e legumes. O prato mais famoso é o Porco San Zé, assado por oito horas.

Manu Buffara, do restaurante Manu, em Curitiba, também vem deixando seu nome na história do 50 Best América Latina. Em 2018, ganhou o prêmio “One to watch”. No ano passado, o de melhor chef mulher. Dessa vez, além de garantir o 35º lugar na lista, foi destaque na categoria sustentabilidade por, entre outras ações, preservar abelhas brasileiras, incentivar a agricultura e a pesca e transformar zonas abandonadas da cidade em hortas urbanas.

Dos oito restaurantes brasileiros que entraram no ranking, cinco são de São Paulo, dois do Rio de Janeiro e um de Curitiba. Minas Gerais nunca teve um representante entre os 50 melhores da América Latina. Quem chegou mais perto foi o Glouton, de Leo Paixão, que no passado, alcançou a posição de número 68, mas já não está mais na lista.

O Brasil continuará em evidência no ano que vem. O prefeito Eduardo Paes anunciou que a cidade será palco novamente da premiação em 2024.

Academia latino-americana

Em 2002, a revista britânica Restaurant criou uma lista para eleger os 50 melhores restaurantes do mundo. O prêmio chegou à América Latina em 2013 e se baseia nas avaliações de 300 especialistas de toda a região, entre jornalistas, críticos, chefs, donos de restaurantes e foodies (amantes da gastronomia). Cada membro da Academia foi responsável por 10 votos, de acordo com as suas melhores experiências nos 18 meses anteriores. Ao menos quatro desses votos devem mencionar restaurantes fora do país de origem dos votantes.