Já imaginou trabalhar com algo que você não consome? Essa é a realidade do mineiro Thiago Gazzinelli e do paulista Diogo Sevilio. Ambos são bartenders que não bebem álcool. Para que pudessem continuar a criar drinques, eles tiveram que se adequar à profissão e fazer com que a paixão pela coquetelaria fosse maior do que o vício pela bebida.
Thiago Gazzinelli, o Che, revela que o processo de criação de drinques teve que ser modificado. “Nós já temos uma concepção formada de sabores da bebida alcoólica. Então, eu escolho a combinação de ingredientes primeiro e penso depois no tipo de bebida alcoólica que vai combinar com esses sabores.”
Para chegar ao resultado desejado, ele não deixa de provar a mistura. “Experimentar, eu experimento, mas isso não quer dizer que eu vou beber um copo inteiro. Geralmente, uso um canudinho ou uma colher.” Thiago também conta com a ajuda de colegas na hora de desenvolver os drinques.
Nos últimos meses, Che foi o responsável pela elaboração da carta de drinques do restaurante Amado Lourdes, no Bairro Lourdes, Região Centro-Sul de Belo Horizonte. Como o cardápio é inspirado nos romances de Jorge Amado, o processo de criação foi um pouco diferente.
“Comecei primeiro pelos nomes. A partir deles, fui construindo as notas de sabor”, conta. “Por exemplo, imaginei que o 'Tieta do Agreste' deveria ter cachaça de jambu na composição. Por ser um dos personagens mais icônicos e inesquecíveis de Jorge Amado, o sabor marcante e o efeito sensorial de formigamento e dormência na boca combinariam com ele.” Além do jambu, esse drinque tem vodca de maracujá e jasmim, manga, maracujá, laranja, xarope de hibisco, pimenta-rosa e limão.
O “Gabriela Cravo e Canela” faz jus ao próprio nome e leva uma calda artesanal de especiarias, que é preparada com cravo e canela. Complementam a receita vodca de frutas vermelhas, xarope de hibisco, morangos, limão e bitter aromático. Já o “Tocaia Grande” une gim, geleia de jabuticaba, limão siciliano e xarope de capim limão.
Os desafios de montar uma carta de drinques sem beber álcool ficaram evidentes para Thiago. “É mais desafiador quando a carta de coquetéis é restrita a um portfólio específico de bebidas. Nesse caso, foi fechada uma parceria com uma multinacional no segmento de destilados.” Mas ele se vale de liberdade criativa para desenvolver experiências sensoriais, sejam alcoólicas ou não alcoólicas.
Memória em ação
Sem beber álcool há mais de cinco anos, Diogo Sevilio, conhecido pelos amigos como Diogro, continua a criar drinques normalmente. O “Caquila” (tequila e vermute de caqui) e o “Singleton 12” (uísque single malt e cordial de coentro) eram servidos no Cozinha 212 e faziam sucesso enquanto ele trabalhava no restaurante que fica no Bairro Pinheiros, em São Paulo.
“O processo de criação acontece de várias formas. Às vezes temos um tema, às vezes queremos trabalhar melhor algum ingrediente”, conta.
A memória olfativa e de paladar adquirida ao longo dos anos ajuda na produção. “Meu repertório pré-adquirido me ajuda bastante a ser assertivo.” Mesmo assim, ele acha necessário provar a receita.
“Provo os drinques sempre que precisa e sempre que eu quero, o que é quase nunca. A vontade de provar vem apenas quando eu estou curioso em relação a algum sabor ou combinação”, explica Diogo, de Vargem Grande Paulista, no interior de São Paulo. “Quando eu digo provar, é bem pouquinho. Não é tomar nem um quinto do drinque, é só um ‘biquinho’. Se julgar que já provei o bastante, mas ainda se não cheguei ao resultado desejado, deixo para o dia seguinte ou peço ajuda.”
Por mais que esteja sóbrio há bastante tempo, Diogo confessa sentir falta da explosão de sabores de um drinque.
“Hoje, eu não gosto mais do efeito do álcool, mas sinto falta da complexidade que as bebidas alcoólicas têm. Pelo fato da destilação, os aromas, a combinação com outros ingredientes, fazer infusões. Você incorpora muitas características que ficam difíceis de conseguir com drinques sem álcool, até porque não consegue preservar a bebida por muito tempo.”
Trabalho encantador
Thiago decidiu seguir a profissão quando estava entrando na fase adulta. Durante um intercâmbio para os Estados Unidos, onde trabalhou em hotéis, cassinos e estações de esqui, teve contato com bartenders e ficou amigo deles. Aos 20 e poucos anos, achou encantadora a vida de quem fazia drinques.
“Romantizei a experiência do bar. Olhava e pensava: ‘eu quero ser igual a esses caras’. Estava começando a beber. Na época, era mais tímido e eles conseguiam interagir bem com o público. O bartender era o arquétipo de tudo o que eu queria ser naquele momento: o centro das atenções, uma pessoa bacana, amiga de todo mundo, além de mexer com álcool”, conta.
O que era para ser um trabalho prazeroso se tornou um verdadeiro peso na sua vida. “A partir do primeiro drinque, não conseguia parar. Essa frequência, praticamente diária, afeta seu sono, sua saúde mental, seu comportamento e sua saúde no geral. Minha pressão sanguínea estava alta, estava com sobrepeso, não conseguia concentrar para ver um filme, ler um livro. Vi que tinha um problema”, revela Thiago, que conseguiu perceber os malefícios do excesso de álcool.
Há um ano, depois de refletir sobre a sua saúde, Thiago decidiu aposentar a bebida. “O momento mais difícil foi o carnaval. Você está rodeado pelo álcool a todo o momento. Seus amigos não te oferecem água, eles trazem cerveja. Mas eu consegui. Tenho uma filha de 18 anos e um dos meus sonhos é conhecer os meus netos. No ritmo que eu estava, isso não iria acontecer”, desabafa.
Como observa Diogo, no ambiente de trabalho do bartender, a oferta de álcool é vasta, os ambientes são permissivos e muitas vezes incentivadores. “Você está na biblioteca, o que você vai fazer quando está frustrado? Você vai pegar alguma coisa para ler. Se você está em um bar, você vai fazer o que? Isso é bastante recorrente. Você acaba buscando compensações por frustrações nas coisas que estão próximas a você”, explica o paulista, que enxergava a bebida como uma válvula de escape.
Com o apoio da esposa, ele decidiu que, depois de se casar, o álcool não faria mais parte da sua vida. “Em 2018, tinha acabado de me mudar para morar com a minha esposa. Ali, decidi que algumas dinâmicas da minha vida precisavam acabar, pois não cabiam num relacionamento. Era alcoólatra e dependente químico há, pelo menos, 17 anos. Esse foi o estopim para eu mudar e seguir em frente com minha vida. Casado você tem outras responsabilidades, você tem alguém para estar do seu lado e te apoiar e tem que estar junto do seu companheiro. Não cabe uma vida de ‘rolês’”.
Histórias que inspiram
Os bartenders hoje gostam de mostrar suas histórias com o objetivo de conscientizar mais pessoas do ramo da coquetelaria a ter cuidado com o consumo exagerado de álcool.
“No geral, pessoas que trabalham em bar, principalmente no Brasil, trabalham bebendo. Acho que essa é a parte mais preocupante. Já fiz parte dessa estatística e não é saudável esse relacionamento com o álcool. Deixa de ser gostoso e passa a ser uma relação tóxica”, destaca Thiago. “A lembrança dos efeitos colaterais do álcool, além de me fazer parar de beber, me fez conseguir aconselhar amigos a diminuir o consumo. Se eu consegui, todo mundo consegue.”
O mineiro está também planejando ajudar pessoas através da internet. “Estou preparando um blog para conscientizar principalmente quem trabalha na área. Mostrar que tem como melhorar nosso estilo de vida e cuidar da nossa saúde física e mental. Não quero que minha experiência e minha história sejam uma jornada solitária e silenciosa.”
De São Paulo, Diogo aconselha: “Se alguém também está passando por isso e achar que existe o mínimo de risco, escolha a sua vida, mude de ‘trampo’. Continuar trabalhando como bartender foi um risco muito grande que eu decidi assumir. Pensei que conseguiria separar o trabalho do resto da minha vida e tinha – tenho ainda – uma boa rede de apoio: minha esposa, minha mãe e, na época, a equipe do restaurante onde trabalhava.”
Criatividade no copo
Com a decisão de tirar o álcool da sua vida, Diogo Sevilio passou a investir mais seus conhecimentos na produção de drinques não alcoólicos. O que, segundo ele, falta no mercado. “Quando você encontra drinques sem álcool, geralmente são coquetéis frutados, bebidas doces e cremosas. Estava acostumado com bebidas mais amargas. Esses drinques têm seu público, mas não são os únicos.”
Para mudar essa realidade, ele decidiu desenvolver receitas que agradassem o seu paladar. “Existem diversas maneiras de produzir drinques mais complexos e sem álcool. Você pode usar chás, madeiras, xaropes ricos de sabor, deixar as especiarias em evidência e muito mais.”
Diogo foi além e juntou o mundo da coquetelaria com a ciência. Começou a tirar o álcool das bebidas alcoólicas e utilizar esse novo “destilado” nas receitas.
“No processo de destilação, você separa o álcool do resto do líquido por meio da evaporação, já que ele entra em vaporização aos 70°C. Você aquece a bebida até uns 80°C, controlando sempre a temperatura para não perder água também. Quando ele diminuir seu volume em cerca de 40% a 50%, você para de cozinhar e terá um líquido livre de álcool”, explica o paulista.
Diogo chegou a levar sua invenção para um concurso de negroni (coquetel feito de gim, vermute rosso e Campari), onde impressionou todos os juízes, mas acabou sendo eliminado por brechas no regulamento.
“A cartela sem álcool não é só para quem não bebe, ou quem não está bebendo. Também é uma opção para quem quer diminuir a quantidade de drinques num dia. Você pode sair com seus amigos e consumir bebidas não alcoólicas além de refrigerantes e sucos”, destaca Diogo.
Como bartender e como consumidor, Thiago Gazzinelli sente falta de mais opções de drinques não alcoólicos em BH.
“Tenho dado muita ênfase a drinques sem álcool. Hoje eu faço parte desse grupo que gosta de beber algo gostoso, mas sem bebida alcoólica. Gostaria que BH se atentasse para esse tipo de público, que tem um potencial muito grande, até mesmo financeiro. A casa que tiver uma carta não alcoólica, principalmente durante o dia, no almoço, onde muitas vezes as pessoas não querem beber álcool, vai ampliar os frequentadores e o faturamento também.”
Veja receitas de drinques sem álcool
Tropicalia Sunshine (Thiago Gazzinelli)
Ingredientes
60ml de suco de maracujá; 60ml de suco de laranja; 60ml de suco de manga; suco de meio limão (aproximadamente 15ml); 120ml de ginger ale; gelo a gosto; fatia de limão para decorar
Modo de fazer
Encha um copo alto com gelo a gosto. Adicione os sucos de maracujá, laranja, manga e limão. Mexa bem para combinar todos os sucos. Complete o copo com o ginger ale. Mexa para misturar todos os ingredientes. Decore o copo com uma fatia de limão.
Peach Bull Banguela (Diogo Sevilio)
Ingredientes
40ml de café espresso; 30ml de purê de pêssego (ou qualquer geleia de frutas amarelas); 30ml de suco de limão; 60ml de água tônica; 1 casca de limão torcida (twist)
Modo de fazer
Em uma coqueteleira com bastante gelo, misture o café com o purê de pêssego e o suco de limão, batendo vigorosamente. Coe a mistura e transfira para um copo com gelo. Complete com água tônica. Misture gentilmente e finalize com uma casca de limão torcida.
*Estagiária sob supervisão da subeditora Celina Aquino