O chef Kiki Ferrari tem quase todas as partes do corpo tatuadas, dos braços, pernas e costas a pescoço, rosto e até a careca
 -  (crédito: Túlio Santos/EM/D.A Press)

O chef Kiki Ferrari tem quase todas as partes do corpo tatuadas, dos braços, pernas e costas a pescoço, rosto e até a careca

crédito: Túlio Santos/EM/D.A Press

Rebeldia, personalidade, história. São algumas das palavras que definem o significado da tatuagem. Registrar na pele memórias, superações, valores ou seja qual for a ideia vai além da estética e da expressão artística, eterniza um momento da vida. A tattoo é a assinatura de muitos chefs, que, não só ditam moda e tendência, mas carregam no corpo a expressão do seu jeito de ser e também da sua cozinha.

Há muitos chefs por aí, cheios de estilo e atitude, exalando criatividade na cozinha e no visual. Sejam mais comedidas ou ousadas, as tatuagens fazem parte da apresentação do cozinheiro e são exibidas com orgulho. Ao pensar no corpo como tela, elas podem aparecer nos lugares mais comuns, como braços, mãos e pernas, mas nada impede de encontrá-las no pescoço, nuca, rosto e até na careca.

Os motivos são variados. De imagens que se referem à cozinha e à comida, como utensílios (facas, garfos, colheres), ingredientes, alimentos (frutas, legumes, carnes, pratos), homenagem a um mentor, bebidas e receitas, até representações que nada têm a ver com a gastronomia, mas todas com um significado pessoal.

O chef Caio Soter, do Pacato, restaurante que oferece pratos inspirados “na cozinha de quintal” e sustentados na tríade “vegetais, porco e frango”, é um apaixonado por tatuagem. Ele conta que fez a primeira tattoo aos 15 anos, depois de um ano e meio convencendo a mãe a aprovar. E não parou mais.

“Sempre achei tatuagem muito bonita, uma forma de identidade, além da roupa e do cabelo. Uma maneira de eternizar momentos da vida, gostos particulares. Quis ter várias e não tenho menos do que gostaria.”

Segundo Caio, o tema depende “da fase pessoal”, já que, para ele, a tatuagem “reflete um recorte da vida”. A primeira, com a liberação da mãe, foi uma guitarra com asas: “Tinha uma banda, era guitarrista, estava envolvido com o mundo da música e achava aquilo incrível. A guitarra é inspirada no guitarrista, do qual sou fã, o Richie Sambora (Richard Stephen Sambora), do Bon Jovi.”

Na opinião dele, cada momento vai ter a sua tatuagem: “Quando o tempo passa, às vezes, aquela tatuagem não tem mais tanto a ver com você, mas encaro de maneira positiva, porque é uma lembrança de uma época. Vejo de forma afetiva.”

Caio não segue apenas um estilo, carrega desenhos com design old school, mais autorais, mais simples, de ultrarrealismo... “O legal é encontrar o tatuador que tem um estilo como artista, uma assinatura que tem a ver com seu gosto, com você.” 

Ingredientes mineiros

Hoje, como chef, Caio separou o braço esquerdo só para o tema culinária. E soltou a criatividade em meio a vários ingredientes e “homenagens a Minas Gerais, que mostram um pouco da minha filosofia de cozinha”. Então, você ver estampado por lá: a bandeira de Minas, quiabo, goiaba, jiló, quitoco, ora-pro-nóbis, pimenta, coentro, milho, mandioca, alfavaca, cebola, cenoura, beterraba, romã, queijo, galinha, porco e por aí vai.

Outras que chamam a atenção são uma com a marca do Pirex e um xodó de Caio, o Perfex, aquele pano de cozinha. “Tatuei a forma da dobra que fazemos no Pacato, que retrata a filosofia das minhas cozinhas, a dobradura.”

Chef do Pacato, Caio Soter já perdeu as contas de quantas tatuagens tem; ele enxerga os desenhos como uma forma de identidade, assim como roupa e cabelo

Chef do Pacato, Caio Soter já perdeu as contas de quantas tatuagens tem; ele enxerga os desenhos como uma forma de identidade, assim como roupa e cabelo

Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press


Não há uma tatuagem preferida, há algumas mais especiais, digamos. Caio destaca uma no braço direito, aliás, três criadas por Matheus Dias, “um grande artista, tatuador de coração”. “São três poemas. Um trecho do Grande Sertão Veredas, de Guimarães Rosa, o maior livro da língua portuguesa já escrito, que cobre quase todo o meu antebraço direito; um poema de Fernando Pessoa e uma passagem do sermão do Padre Antônio Vieira.” 

Sem retoques

Espalhadas pelo corpo, as tattoos do chef preenchem as duas mãos, dois braços (antebraços completos, fechados), bíceps, coxas, costas e panturrilhas. Mas ainda há espaço para futuros registros. Entre coloridas e p&b, as sem cor são hoje as preferidas: “Gosto mais do preto e branco pela durabilidade. Não gosto de retocar tatuagem, acho importante que ela envelheça com a gente, com o corpo. A colorida desbota, distorce.”

Na cozinha, tatuagem nunca foi barreira ou objeto de discriminação. Mas não era bem assim na sua carreira no direito: “Era advogado, então tinha como regra só tatuar do cotovelo para cima, assim as tatuagens não ficavam à mostra, já que seria vítima de olhares e preconceito. Na cozinha, já acho que quem não tem tatuagem é que parece estranho”, compara.

O braço esquerdo de Caio Soter é reservado para elementos que se relacionam com a sua cozinha, como a bandeira de Minas Gerais, queijo, quiabo e ora-pro-nóbis

O braço esquerdo de Caio Soter é reservado para elementos que se relacionam com a sua cozinha, como a bandeira de Minas Gerais, queijo, quiabo e ora-pro-nóbis

Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press


Não pergunte a Caio quanto tatuagens ele tem. Impossível contar: “Nem saberia contar, não há como separá-las, sei que é um bocado. Só de ingredientes são mais de 20.”

Com tanta tattoo, como será que fica a dor de carimbar a própria pele? “A dor é necessária para o processo. Não é absurda e insuportável, mas é importante escolher um profissional com a mão leve e não uns 'toscos' que estão por aí e acham até legal rasgar sua pele. A tatuagem pode ser feita com carinho e acho importante saber lidar com a dor.” 

Umbigo de banana

A chef Marcela Guerra, do Comidaria Guerra, no Mercado Novo, endereço especializado em pratos veganos e vegetarianos, produzidos com ingredientes naturais, sem conservantes e de pequenos produtores locais, já perdeu a conta de quantas tattoos tem. Mas ela não se esquece da primeira, aos 16 anos: um crânio tibetano.

“A tatuagem é uma das artes mais interessantes, está o tempo inteiro presente em você, para sempre. Hoje, não me vejo sem tattoo. A primeira foi o crânio tibetano, tema que me interessava na época, pesquisava, é guardiã da sabedoria. Tatuagem tem a ver com a época, o momento em que vivemos. Hoje, já tenho muitas relacionadas à comida.”

"Não me vejo sem tattoos", diz Marcela Guerra, do restaurante Comidaria Guerra

"Não me vejo sem tattoos", diz Marcela Guerra, do restaurante Comidaria Guerra

Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press


Faca, queijo, alho, café, coentro, tomilho, pizza e umbigo de banana são algumas das tatuagens estampadas na pele de Marcela: “O umbigo de banana é o símbolo do meu restaurante e representa a comida brasileira, especialmente a mineira. Tem relação com a minha escolha de alimentação, a criação do meu espaço e do cardápio”, explica a chef, acrescentando que serve um antepasto de umbigo de banana com pimentões coloridos, cebola roxa, e uva-passa, “bem tradicional”.

A virada temática de Marcela começou em 2013, quando se encontrou no mundo da gastronomia. Antes, atuando como designer de moda, modelo, vendedora de loja e profissional da área de marketing, as escolhas eram outras.

“A tatuagem vira parte da nossa identidade e, ao mesmo tempo, é o que colocamos no prato. Sou vegetariana, escolhi a cozinha vegana e vegetariana pela minha dificuldade de encontrar comida gostosa e com preço justo. Aliás, é uma opção além da comida, é um estilo de vida e a alimentação faz parte dessa escolha. Então, é muito maior, é o meu dia a dia, como me coloco no mundo. E as tatuagens estão no pacote, fazem parte de quem eu sou e da minha relação com as artes.”

Marcela tem tatuagens no braço, pernas, mão, peito e parte da barriga. Muitas outras áreas estão em branco só a espera da próxima, que não tem dia ou hora, depende da inspiração, do desejo.

“A ideia vai nascendo e, de repente, aparece, não é linear. Uma história que vivi pode se transformar numa tattoo. Ou simplesmente surge de um desejo. No peito, tenho a tatuagem de uma raposa, um animal que transita em vários meios. Para mim, significa adaptação. Junto dela, tenho um ramo de arruda, que tem a ver com proteção.”

Existe tatuagem sem dor? Marcela é sincera: “Sinto muita dor. E só a suporto porque amo.” 

Vejo flores em você

A paixão pela confeitaria já se revelava aos 11 anos, quando fazia brigadeiros para vender. Depois de trabalhar como psicóloga, Renata Penido criou uma marca de chocolates, estudou com chefs internacionais e, em 2016, descobriu sua paixão por ensinar. Assim se destaca, comandando o ateliê onde ministra aulas e oferece consultorias sobre chocolataria e caramelos.

A tatuagem é outra paixão, ainda que dolorosa. A primeira, aos 16 anos, uma estrela, foi marcada na pele ao lado da mãe, Marília, e da irmã, Fernanda, que tatuaram o mesmo desenho: “Fizemos juntas e, em seguida, convenci a minha mãe a fazer uma tatuagem sozinha. Escolhi o sol como símbolo do universo e a relação com meus amigos e a vida.”

Todas as tatuagens de Renata têm “lugar, motivo e envolve minha história e o trabalho, a gastronomia, fazem parte deste significado. No ombro, tenho uma mandala de cacau, símbolo da Doce Rê, minha primeira marca, aberta em 2013.” Tattoo para ela é memória: “É como uma foto, por ela podemos viajar no tempo. A tatuagem tem o poder de nos transportar para aquele momento, reviver a potência naquele instante. Não é estilo. Minhas tatuagens fazem parte de resoluções que me importam.”

Diferentemente de grande parte dos chefs, a chocolatier e caramelier não tem tattoos com referências gastronômicas.

“Em 2016, fiz uma flor de lótus para marcar meu renascimento, um momento de conexão e desabrochar no trabalho e na vida, quando aprendi a separar esses dois mundos, que é bem difícil. Já em 2019, na Espanha, encontrei a brasileira Paula Garbi, uma tatuadora incrível, e fiz com ela uma flor que abraça o meu braço. Passava por um burnout, um processo de depressão, de solidão por estar longe da família e a flor representa florescer. Naquele momento, era outro renascimento para mim.”

A tatuagem, para ela, tem esse significado particular: renascer, renovar, recomeçar: “Não tenho prazer em me tatuar, sinto muita dor, mas é um processo pelo qual preciso passar. São fases importantes. Minha última tatuagem é de 2021. Um galho de arruda saindo da base do meu pé, que celebra uma das minhas mães, mãe Maria, que veio para ajudar a me criar. Tenho amor e adoração por ela e a tattoo é uma lembrança de transformação e ressignificação. Ela me benzia com arruda”, conta.

Agora, Renata está dando um tempo, reunindo forças até a próxima tatuagem. Provavelmente, ela deixa escapar, será o símbolo da marca nova: uma folha. “É linda, mas ainda não sei onde ela vai se encaixar no meu corpo”, revela.

As tatuagens de um “bárbaro”

A proposta do restaurante A Forja Taverna Épica Medieval, que é uma síntese da cozinha medieval do mundo, rústica e bem condimentada, com uso de ervas e especiarias, além das curas e defumados, chama a atenção, assim como as tatuagens de um dos idealizadores, Kiki Ferrari. “Enquanto sobrar espaço, sentido, orgulho, aprendizado, coragem e transformação na minha vida, eu farei até a morte”, diz o chef, que já tem 33 tattoos.

Para Kiki, a tatuagem é uma expressão subcultural dos movimentos artísticos e sociais do underground urbano, “além de ser uma forma de elevar meu corpo ao nível simbólico no intuito de ressignificá-lo, onde ele deixa de representar uma engrenagem social para ser símbolo de autopertencimento.”

O chef conta que suas tatuagens expressam marcos, referências, experiências e relações pessoais significativas de fases da sua vida.

As tatuagens expressam marcos, referências, experiências e relações pessoais significativas de fases da vida do chef Kiki Ferrari

As tatuagens expressam marcos, referências, experiências e relações pessoais significativas de fases da vida do chef Kiki Ferrari

Túlio Santos/EM/D.A Press


“Por meio da tatuagem, reverencio e reconheço em mim aspectos, arquétipos e atributos espirituais, psicológicos e culturais da realidade e do potencial humano. Do contrário, só seria uma reafirmação da submissão e achatamento do potencial e progresso humano à insegurança do consenso disfarçada de liberdade, por meio da ilusória tendência da moda. Isso seria um desperdício do potencial que a tatuagem tem. Seria tatuar em vão. Mas essa é uma visão pessoal, já que busco significar tudo a nível religioso, ritualístico e tribal”, comenta.

As tatuagens de Kiki variam entre old school, neo tradicional, motivos etnoculturais e outros estilos e misturas: “Acho que essas características são análogas ao meu estilo culinário e empreendimentos gastronômicos, que tendem a ser rústicos ou disruptivos”.

Destaque para o desenho que ele tem no meio do rosto, na parte superior do dorso do nariz. Inspirada nos Tamga ou Tamgha, é um selo usado pelos nômades da Eurásia, conhecidos como povos bárbaros.

“No caso da minha tatuagem ao estilo Tamga, por ser tão exposta e imponente, no meio da cara e entre os olhares, é um recado impactante, bem explícito, agressivo e, às vezes, bem incômodo para a maioria das pessoas. Representa bem o incômodo que um povo bárbaro causa ao império. E eu me identifico com os povos bárbaros, pois, assim como eles, por minha ousadia, irreverência e rusticidade, muitas vezes fui considerado incivilizado, quando, na verdade, tenho consciência e orgulho de saber que esse espírito livre é minha verdade, a única coisa que eu podia contar como alguém fora do padrão.”

Ainda de acordo com o chef, essa tatuagem ao estilo Tamga representa “a força e a coragem que movimentam a efervescência cultural humana e as qualidades que me permitiram ter competência nos meus empreendimentos gastronômicos, rompendo as fronteiras como um bárbaro e como essa tatuagem que invade, afeta e chama o olhar do outro.” 

Crânio em chamas

Kiki também tem uma tatuagem que expressa de maneira mais óbvia sua relação com a gastronomia. É um crânio em chamas com um garfo e uma faca cruzados ao fundo.

“Ela representa o reconhecimento de que essa profissão se trata de sacrifício do ego, representado pelo crânio, e que nós, cozinheiros, somos parte do menu, devorados e consumidos pelo garfo e pela faca, por uma profissão de doação, entrega e sacrifício massacrantes e, indiscutivelmente injusta, onde somos obrigados a negligenciar a vida social íntima e nossa saúde mental, emocional e física para afetar o outro no lugar e no momento onde somos mais bichos, humanos e frágeis, buscando por meio dos comes e bebes acessar e preencher com reconforto e afeto nossa profundidade, diante do abismo raso e frio do nosso tempo”, analisa.

Símbolo do restaurante e da sua cozinha, o umbigo de banana está tatuado no braço da chef Marcela Guerra

Símbolo do restaurante e da sua cozinha, o umbigo de banana está tatuado no braço da chef Marcela Guerra

Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press


Kiki tem quase todas as partes do corpo tatuadas. Braços, dedos, mãos, peito, barriga, costas, pescoço, perna, cabeça e rosto.

“Elas nunca me foram obstáculo no mercado gastronômico. Na época em que comecei a trabalhar, a profissão já era um lugar onde era comum encontrar profissionais de segmentos marginalizados de todas as formas possíveis, desde ex-presidiários, ex-viciados, periféricos e pertencentes a subculturas urbanas, o que não é surpresa. É um perfil coerente a uma profissão que se resume na condição de encaixar a adversidade em um sistema com entrega e resistência sob pressão. Nossa vida já é assim e é assim que uma cozinha funciona”. 

Na onda dos marinheiros

De Anthony Bourdain a Alex Atala, de Henrique Fogaça a André Mifano, a tatuagem acompanha os profissionais da cozinha. Essa ligação, aliás, remonta ao início do século 20, quando os cozinheiros trabalhavam em navios e em grandes cozinhas industriais. Naquela época, elas eram mais comuns entre marinheiros e soldados. Os cozinheiros aderiram e, desde então, as tattoos se tornaram símbolo da cultura de chefs de cozinha. Algumas ficam à mostra, outras são cobertas pelas dólmãs. Mas estão lá, fazem parte de quem eles são. E não importa a idade ou geração. Se, em outras profissões, ou até mesmo na cozinha, a tatuagem já foi rejeitada por preconceito, sob olhar enviesado, hoje não é mais assim. Pode até ter alguma restrição por aí, mas, na maioria das vezes, elas são bem-aceitas e não afetam a carreira.


Serviço


Pacato (@pacatobh)
Rua Rio de Janeiro, 2735, Lourdes
(31) 98324-8736

Comidaria Guerra (@comidariaguerra)
Avenida Olegário Maciel, 742 – terceiro andar, Centro
(31) 99787-3087

Renata Penido Chocolataria e Caramelos (@renatapenidochocolatier)
cursos@renatapenido.com

A Forja Taverna Épica Medieval (@forjataverna)
Rua Cláudio Manoel, 500, Funcionários
(31) 98291-9595