Mariana Gontijo testou e alterou as receitas da mãe até chegar ao mais original possível  -  (crédito: Juarez Rodrigues/EM/D.A Press)

Mariana Gontijo testou e alterou as receitas da mãe até chegar ao mais original possível

crédito: Juarez Rodrigues/EM/D.A Press

Fogão a lenha acesso. Tacho de cobre usado para fazer doces. O gestual de escaldar o polvilho na hora de fazer pão de queijo. O frango que ganha cor e sabor com a técnica do pinga e frita. A mesa que sempre recebe com bolo e cafezinho. Falar de cozinha mineira é falar de tradições. Hábitos que fizeram com que a nossa comida tivesse identidade e fosse reconhecida mundo afora. Às vésperas de 5 de julho, Dia da Gastronomia Mineira, levantamos a seguinte questão: o que temos feito para preservar essas tradições? Com a palavra, uma chef que leva o conhecimento da nossa cozinha adiante.

 


“A cozinha do futuro é a cozinha do passado.” Mariana Gontijo, do restaurante Roça Grande, usa essa frase da cozinheira indígena paraense Tainá Marajoara para começar a conversa. “Acredito muito que quem não sabe de onde vem não sabe para onde vai. Se não conhece as tradições, fica impedido de criar novas tradições e acaba refém do colonialismo cultural, que é uma realidade na nossa gastronomia”, complementa.


A chef de Moema, cidade na Região Centro-Oeste de Minas Gerais, teve certeza de que trabalharia com cozinha tradicional quando viu que as nossas tradições não eram representadas nem mesmo na faculdade. Desde a época de estudante, ela se enveredou por esse caminho – nada fácil, por sinal – para representar a cultura do seu povo. Enfrentou preconceitos, ouviu comentários como “lá vai ela usar produto do cerrado de novo”, mas insistiu, não desistiu e acabou sendo conhecida profissionalmente justamente por levantar essa bandeira.

 


“Estudo cozinha internacional, acho interessante a fusão, só que isso para mim parece um risco de perdermos aquilo que é genuinamente nosso. Resolvi trabalhar com cozinha tradicional, usar ingredientes típicos ou nativos e privilegiar técnicas brasileiras para que haja representatividade da tradição. Se acreditarmos que só a cozinha internacional dispõe de técnicas sofisticadas e elaboradas, vamos perder as técnicas que temos. Por exemplo, fazer tutu, desde a escolha do ingrediente até o preparo, é muito complexo, e todas as técnicas são nossas.”

 

A chef teve certeza de que trabalharia com cozinha tradicional quando viu que as nossas tradições não eram representadas nem mesmo na faculdade

A chef teve certeza de que trabalharia com cozinha tradicional quando viu que as nossas tradições não eram representadas nem mesmo na faculdade

Jair Amaral/EM/D.A Press
 


O dia a dia do Roça Grande está ligado a várias tradições da cozinha mineira, a começar pela sazonalidade. “Sempre trabalhamos de forma reversa e isso diz muito sobre a cultura alimentar em Minas. Enquanto outros restaurantes criam o cardápio e vão atrás dos ingredientes, fazemos como se faz na roça: vemos o que tem no campo e criamos o cardápio”, destaca.


Mariana monta o cardápio da semana de acordo com a disponibilidade dos fornecedores. Muitos são da sua cidade natal. “Em todos os quintais por onde já rodei, em todas as regiões do estado, sempre vejo a tradição de servir o que está na época. É o melhor que o caipira pode oferecer.”

 

Técnicas tradicionais


Na hora de cozinhar, a chef sempre busca técnicas tradicionais mineiras e tenta reproduzi-las da forma mais fidedigna possível. Entre elas, carne de lata, angu sem sal, frango pinga e frita e tutu de feijão, exatamente como o da Festa de Reinado. Ou seja, mais batido (sem pedaços), mais fluido (com menos farinha) e brilhoso (pelo uso da banha de porco, que também dá sabor). Como aprendeu, não usa fogo alto, mexe o tempo inteiro e adiciona cachaça no momento certo para dar tempo de o álcool evaporar e deixar um gostinho. Por isso, é chamado de tutu tonto.

 


“Quando vou fazer uma receita que quero preservar, faço uma pesquisa empírica, já que temos muito pouca literatura, nossa tradição culinária é oral. A grande maioria das pessoas que cozinhavam eram mulheres e, em sua maioria analfabetas, então a forma de preservar a tradição ainda depende da pesquisa empírica”, observa.


Um prato servido no último fim de semana resume bem o trabalho dela de preservação da nossa cultura alimentar. Valoriza tanto técnicas quanto ingredientes locais. A canjiquinha cremosa se junta a um refogado de carne de porco, salada com frutas, verduras e legumes da época: azedinha, rúcula, mexerica e conserva de abóbora de porco (ou abóbora caipira). O curioso nome, “Isso não é um risoto”, tem o objetivo de provocar uma reflexão. “Fiz a canjiquinha com queijo e manteiga, mas o uso de uma técnica internacional, a mantecatura, não transforma uma receita tradicional nossa em risoto. Canjiquinha tem nome próprio, e risoto é só de arroz.”

 

Resgate das quitandas


Outra tradição de Minas que Mariana preserva, com carinho e orgulho, são as quitandas. Tanto que se denomina quitandeira. Ela começou as pesquisas pelo caderno de receitas da mãe, mas foi fazendo alterações até chegar aos ingredientes e processos originais, considerando que, nas décadas de 1980 e 1990, houve um boom de ultraprocessados. No pão de queijo, a manteiga entrou no lugar do óleo. Para fazer broa de fubá, deixou a farinha de trigo para usar exclusivamente fubá de canjica.

 

Nas próximas semanas, o restaurante vai lançar o tirijum, nome que se dá no interior ao café da manhã reforçado

Nas próximas semanas, o restaurante vai lançar o tirijum, nome que se dá no interior ao café da manhã reforçado

Juarez Rodrigues/EM/D.A Press
 


A chef aproveita o momento para avisar que vai lançar nas próximas semanas o tirijum, nome que se dá no interior ao café da manhã reforçado (acredita-se que a palavra venha de uma abreviação de “tirar jejum”). Seu desejo é ir na contramão dos brunchs americanizados. “Roça tem brunch desde que o mundo é mundo. É um café da manhã reforçado, só que mais cedo, para quem vai para a lida. Em vez de avocado toast e ovos rancheiros, vamos servir biscoito de polvilho frito, broa de canjica e cuscuz.”


O tirijum será oferecido aos sábados no restaurante. A pessoa vai poder montar o seu balaio de quitandas e, para acompanhar, pedir bebidas como suco de frutas do cerrado, café e leite queimadinho. Mais uma forma de reafirmar as nossas tradições.

 

 

Missão de vida


Mariana reconhece que é um grande desafio perpetuar nossa cultura alimentar. Mas encara isso como uma missão de vida. E tem claro que o Roça Grande nunca vai se render às tendências para deixar de valorizar o passado. Até porque percebe que os turistas estão mais interessados em consumir o que é genuinamente local. Muitos vão especificamente às sextas para comer o prato de Reinado, com arroz, tutu, carne, maionese e macarrão.


“As pessoas não querem consumir só gastronomia, querem consumir cultura. Isso para mim é tendência de mercado e sempre enxerguei o que fazemos como vanguarda. Quanto mais gente entender, mais gente vai fazer.”

 


Além do trabalho no restaurante, a chef transmite todo o conhecimento em sala de aula. “Toda vez em que dou aula sobre quitandas, de início existe uma rejeição, que é suplantada depois que os alunos comem. No último semestre, fiz biscoito de araruta, a fécula de um tubérculo. Quando um aluno colocou na boca, falou que era o biscoito da casa da avó, pensava que nem existia mais. Essa reconexão com memórias, tradições e sabores pode salvar.”


Como professora, ela também incentiva os alunos a conversar com seus avós, pais, tios, com pessoas que detêm as tradições, registrar e transformar a oralidade em conhecimento fundamentado.


Anote a receita: “Isso não é um risoto” - Canjiquinha cremosa com refogado de carne suína 

 

'Isso não é um risoto': nome do prato tem o objetivo de provocar uma reflexão

'Isso não é um risoto': nome do prato tem o objetivo de provocar uma reflexão

Roça Grande/Divulgação
 


Ingredientes

  • 500g de carne suína da sua preferência (suã, pernil, linguiça, costelinha)
  • sal a gosto
  • pimenta-do-reino a gosto
  • 3 dentes de alho
  • 2 colheres de sopa de banha de porco
  • 100g de cebola amarela cortada em cubinhos
  • 50g de cenoura ralada
  • 50g de talos de salsinha
  • 100ml de cachaça
  • 50g de extrato de tomate
  • 1 maço de salsinha
  • 250g de canjiquinha
  • 400ml de água
  • 400ml do caldo do cozimento da carne
  • sal a gosto
  • pimenta-do-reino a gosto
  • 2 colheres de sopa de manteiga
  • 200g de queijo minas artesanal meia cura

 

Modo de fazer

  • Tempere a carne suína com sal, pimenta-do-reino e alho e deixe marinar por pelo menos 1h.
  • Em uma panela de pressão, acrescente a banha e a cebola e deixe dourar bem.
  • Acrescente a cenoura e deixe dourar.
  • Adicione a salsinha, deixando dourar também.
  • Por fim, acrescente o extrato de tomate e incorpore todos os ingredientes, deixando dourar bem.
  • A consistência deve ser de um purê rústico.
  • Acrescente a cachaça e remova o fundo da panela.
  • Acrescente a carne e refogue bem no processo de pinga e frita, pingando água para retirar a crosta que vai se formando no fundo da panela e deixando “fritar” novamente.
  • Quando estiver bem dourada, cubra com água e deixe cozinhar leve na pressão até ficar macia a ponto de desfiar.
  • Desfie a carne e incorpore o necessário do caldo para que fique bem suculento e reserve o restante do caldo para a canjiquinha.
  • Ajuste o sal e os temperos.
  • Leve a canjiquinha para cozinhar em pressão, coberta pela água com caldo do cozimento da carne e um pouco de sal, por aproximadamente 10 minutos.
  • Abra, confira o ponto e ajuste o sal, se necessário.
  • Finalize com manteiga e queijo minas.
  • Sirva com o refogado e uma salada refrescante com gomos de mexerica, azedinha, ora-pro-nóbis crua com cebola roxa ou rúcula.
  • Finalize com bastante salsinha.

 

Serviço


Roça Grande (@orocagrande)
Rua São Paulo, 1700, Lourdes
(31) 99119-4739