"Um cozinheiro é um contador de histórias e creio que o Mishiguene tem uma história muito importante para contar." Tomás Kalika, chef do Mishiguene

crédito: Mishiguene/Divulgação

 

“Muitos cozinheiros passam a vida cozinhando pratos que não são próprios. Nem todos têm a sorte de encontrar o seu lugar e o seu discurso, o que tem para dizer e cozinhar.” Quem fala é o argentino Tomás Kalika, fundador e chef do Mishiguene, de comida judaica, em Buenos Aires, capital da Argentina. Há quase 10 anos, ele ousou servir pratos para contar a história do seu povo e vem ganhando destaque pelo mundo. O restaurante está em 32º lugar na lista dos 50 melhores restaurantes da América Latina e é uma das indicações do Guia Michelin na cidade.

 


Tomás é de uma família 100% judaica, que veio da Alemanha, Rússia e Polônia tentar a vida na Argentina, onde se concentra a maior comunidade de judeus da América Latina. Sua história com a cozinha não é nada romântica. Ele não aprendeu as receitas com as avós nem com a mãe. Virou cozinheiro por casualidade e necessidade. Aos 17 anos, sua mãe o despachou para Israel, onde foi parar em um kibutz (comunidade agrícola).


“Precisava trabalhar para ganhar dinheiro e achei vaga no refeitório, lavando pratos. Por isso, quando me mudei para Jerusalém, um ano depois, fui buscar trabalho na área.”


O argentino viveu em Israel por 10 anos. Fez uma estreia invejável, na cozinha do israelense Eyal Shani, um dos chefs mais famosos do país (que tem mais de 40 restaurantes pelo mundo, sendo o Shmoné, em Nova York, reconhecido com uma estrela Michelin), como lavador de pratos, e logo se deu conta de que a cozinha era a sua paixão. Depois trabalhou em cruzeiros e hotéis, mas nunca com comida judaica.

 


“Antigamente, não se estudava cozinha, aprendia-se com grandes mestres. Tive a sorte de poder trabalhar com cozinheiros muito respeitados, que me deram espaço para aprender e crescer”, aponta Tomás, que já soma 25 anos de carreira.

 

Mi Buenos Aires querido


A volta para Buenos Aires foi como um chamado. O desejo de se reconectar com a sua família e as suas raízes se somava ao sonho (como todo cozinheiro) de abrir seu próprio restaurante, e tinha que ser na sua cidade, “a mais linda e preciosa do mundo”. A primeira tentativa, com o The Food Factory, não deu certo. Em dois anos, ele quebrou e perdeu todo o dinheiro.


“Há coisas na vida que estão escritas. Eu me imaginava fazendo algo mais parecido com cozinha francesa do que nem sequer com cozinha argentina. Tive que abrir o primeiro restaurante e fracassar para entender que tinha que encontrar o meu lugar. Sinto que o Mishiguene estava me esperando para cozinhar comida judaica e contar essas histórias. Um cozinheiro é um contador de histórias e creio que o Mishiguene tem uma história muito importante para contar.”


Tomás não está falando apenas da história da sua família, mas de um povo, uma cultura que está espalhada por todo o mundo, e ele se coloca como representante dela em Buenos Aires. Nada é fictício, montado, inventado como estratégia de marketing. Ele deixa claro que todo o conceito do restaurante é real, original, tem verdade, tem a sua história, tem o seu sangue judeu, sua vivência de 10 anos em Israel, por isso considera “tão potente” a experiência de comer no Mishiguene.

 

Tabule de camarão e manga

Tabule de camarão e manga

Leo Liberman/Divulgação
 


“Existem grandíssimos cozinheiros que cozinham de maneira incrível, mas existem poucos que têm uma história tão potente e sólida para contar e que unem duas coisas: técnica e conteúdo. Por isso, sou o único no mundo que faz o que faço”, comenta o chef, reforçando o quão inovador é servir comida judaica em um restaurante de fine dining com menu degustação.

 

Sem fronteiras


Quando estampa na fachada do restaurante o letreiro “cozinha de imigrantes”, quer chamar a atenção para um detalhe interessante da história. Ao contrário das grandes cozinhas do mundo (francesa, italiana, mexicana, japonesa etc), que falam de um território específico, a cozinha judaica engloba um povo que foi se mudando para vários lugares ao longo do tempo.


“Queremos dar valor justamente a isso num momento em que há tanto racismo, não só com os judeus, mas com tudo que é diferente. Me parece muito importante entender que as migrações foram necessárias em vários momentos da história do mundo.”


A construção do cardápio envolve estudos, pesquisas e vivências pelo mundo. Especialmente, em Israel. Tomás destaca os passeios pelo mercado Mahane Yehuda, em Jerusalém, onde mergulhou nos sabores das cozinhas da Síria, Marrocos, Turquia, Iraque e de outros tantos países de onde saíram imigrantes judeus. “A cozinha judaica não existe. Na realidade, o que existe é o olhar judaico para as cozinhas dos lugares por onde os judeus foram passando ao longo da história”, pontua.

 


No fim, ele diz que a sua cozinha é uma mistura de tudo isso. O que faz da sua cozinha 100% autoral. Nenhum prato é totalmente original. O chef vai interpretando as receitas e criando novas versões, sem nunca se distanciar das tradições. “Tenho um estilo muito próprio. O que sirvo não é igual a nada, é meu, é a minha interpretação de um estilo de cozinha.”


Seu olhar para a cozinha judaica vem se ampliando ao longo do tempo. Há três anos, ele abriu o Café Mishiguene, versão dia, mais informal, da comida servida no restaurante de noite. Em breve, serão inauguradas uma sorveteria, uma padaria e uma rotisserie.

 

Festa de aniversário


O ano é de comemorações para o Mishiguene, que, em outubro, completa 10 anos. “Dez anos podem ser muito, mas também pode ser muito pouco, quando se tem muitos projetos, ideias e receitas. Digo que essa é a primeira parte. Temos muito mais pela frente”, destaca. Na programação da festa de aniversário, estão incluídos o lançamento de um livro e de um documentário e a organização de um congresso de cozinha de imigração em Buenos Aires.


Tomás é a cara e a alma do restaurante. Mas ele reconhece, claro, que nada disso seria possível sem o trabalho incansável de uma equipe disposta a oferecer o melhor serviço, todos os dias, e fazer com que os clientes saiam sorrindo. Curiosamente, lá não tem nenhum outro judeu além dele.

 

Mishiguene é uma palavra do dialeto iídiche que significa louco, um jeito carinhoso que mães e avós se referem aos seus filhos e netos travessos

Mishiguene é uma palavra do dialeto iídiche que significa louco, um jeito carinhoso que mães e avós se referem aos seus filhos e netos travessos

Mishiguene/Divulgação
 


“Me encanta saber que pessoas não judias querem trabalhar aqui, aprender nossa cultura e nossas receitas, cantar e dançar nossas músicas. Mishiguene tem uma magia impressionante. Todos se apaixonam e querem ser parte dessa história. Somos uma grande família”, comenta, comemorando a baixa rotatividade. Alguns trabalham lá praticamente desde o início.


O mesmo se observa entre os clientes. Ao contrário do que se pode imaginar, não são apenas judeus que frequentam o restaurante. O Mishiguene recebe católicos e árabes, gente de todas as religiões e de todas as partes do mundo. Entre os estrangeiros, a grande maioria são brasileiros, e de São Paulo.


O chef demonstra ter mesmo muita proximidade com o Brasil. Durante a entrevista, fez questão de arranhar o português com “bom dia”, “obrigado” e “tchau”. Diz que tem muitos amigos na capital paulista – cita nomes como Luiz Filipe Souza (Evvai), Thiago Bañares (Tan Tan Noodle Bar), Janaína Torres (Bar da Dona Onça) e Alex Atala (D.O.M), que vai cozinhar ainda este ano com ele no Mishiguene.

 


Então, aproveita para contar que vai estreitar ainda mais a relação com o nosso país. Já está certa a abertura de uma unidade do Café Mishiguene em São Paulo. O argentino juntou-se ao Grupo Rubaiyat (que hoje tem casas espalhadas pelo Brasil, Espanha, Chile e Argentina) e já está em busca de um ponto. A expectativa é de que a inauguração seja no início do ano que vem.

 

Serviço


Mishiguene
www.mishiguenerestaurant.com
@mishigueneba