Parada obrigatória para quem visita BH, o restaurante Casa Cheia, no Mercado Central, serve o tropeiro em porção para compartilhar e prato-feito
 -  (crédito: Edésio Ferreira/EM/D.A Press)

Parada obrigatória para quem visita BH, o restaurante Casa Cheia, no Mercado Central, serve o tropeiro em porção para compartilhar e prato-feito

crédito: Edésio Ferreira/EM/D.A Press

 

Feijão, farinha, ovo, couve e carne, preferencialmente de porco. Tudo refogado na gordura com bastante tempero, alho e cebola. Parte do cotidiano de Belo Horizonte, o feijão-tropeiro, encontrado em nove de 10 botequins e restaurantes da cidade, protagonizou recentemente uma ferrenha disputa entre mineiros e paulistas dentro da maior enciclopédia do mundo, a Wikipedia. O embate vem desde o ano passado e só teve um desfecho dos administradores da plataforma na última semana – mesmo assim, colocando a discussão uma solução basicamente em “panos quentes”.

 


Em 18 de outubro de 2023, o usuário “R.Arden” fez a primeira edição: “O feijão-tropeiro é um prato típico da culinária paulista, criado por bandeirantes e tropeiros paulistas” [grifos do repórter]. Até então, o artigo afirmava que o prato era típico da “culinária tropeira” e relacionado aos estados de São Paulo, Minas Gerais e Goiás. Mas essa parte havia sido suprimida.

 


A partir daí, a queda de braço pela narrativa da origem do prato começou. Alguns editores (pessoas que se cadastram para editar os textos da plataforma, chamados de “wikipedistas”) colocaram “culinárias paulista e mineira” para tentar resolver o imbróglio, outros simplesmente trocavam “mineiro” por “paulista” e assim por diante.


Em 12 de julho, o usuário “Xuxo” – antigo na plataforma e com várias contribuições a artigos ligados a Minas Gerais – encontrou a solução: “O feijão-tropeiro é um prato típico da culinária dos estados brasileiros de Minas Gerais, Goiás e São Paulo, criado pelos tropeiros”.

 

Em 3 de junho, o prato deixou de ser paulista para virar mineiro na Wikipedia: mais um capítulo da disputa entre usuários

Em 3 de junho, o prato deixou de ser paulista para virar mineiro na Wikipedia: mais um capítulo da disputa entre usuários

Wikipedia/Reprodução
 


Na página de discussão do verbete, “Xuxo” rebateu a edição de “R.Arden”, argumentando que a principal referência do defensor da origem paulista do prato era uma postagem de um blog, de 2012. “Nenhuma das fontes sustenta que foi criado ‘dentro dos limites da antiga capitania paulista’ e, mesmo se fosse, os limites geográficos atuais que importam. Nenhuma fonte sustenta que o prato foi criado em SP; a maior parte sustenta que foi criado em MG ou que a origem é compartilhada entre MG, SP e GO”, sacramentou.


Depois de mais idas e vindas nas edições, o administrador “Eta Carinae” trancou, em 20 de julho, as edições, mantendo a redação final: “O feijão-tropeiro é um prato típico da culinária dos estados brasileiros de Minas Gerais, Goiás e São Paulo criado pelos tropeiros”. Como os administradores estão hierarquicamente acima dos editores comuns, a mudança significa que, agora, as edições terão que ser submetidas a um crivo maior da plataforma.

 

Origem ou identidade


A briga pela narrativa de onde nasceu o feijão-tropeiro é problemática do ponto de vista histórico. De acordo com o historiador José Newton Meneses, autor do livro “O continente rústico: abastecimento alimentar nas Minas Gerais setecentistas (Ed. Maria Fumaça, 2000)”, o primeiro equívoco começa com a tentativa de marcar uma origem de um prato específico.


“É sempre fruto de um diálogo cultural. O feijão-tropeiro vem de uma prática de tropas. Não é paulista, não é mineiro, não é goiano, não é caipira, como os paulistas costumam dizer”, explica o professor do Departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

 


Assim, como o próprio nome diz, a receita reflete o cotidiano dos comerciantes que cruzavam há séculos parte do país em mulas, levando na bagagem alimentos que não pereciam no transporte, como feijão, milho e a carne conservada na gordura. Esses ingredientes foram mesclados a outros, como o ovo, a couve e a linguiça, e a invenção extrapolou para as mesas e virou parte da linguagem da cultura mineira.

 

Tese da “Paulistânia”


A questão, no entanto, tomou contornos de disputa na academia a partir da ideia da “Paulistânia”, defendida por historiadores que afirmam que, como não havia fronteiras definidas no período dos bandeirantes – esses paulistas que, entre os séculos 16 e 17, cruzavam o país desbravando o interior – ditaram as tradições culinárias hoje comuns em outros estados. O argumento foi um dos utilizados na discussão da plataforma para manter o feijão-tropeiro como “paulista”.


“É um absurdo. Respeito muito os autores dessa tese, mas ela não tem aderência histórica. Começa com um pressuposto que é correto, de que não há fronteiras para as comidas, e cria uma Paulistânia e inventa uma fronteira. É equivocada porque põe um pressuposto e nega a si mesmo”, critica o professor e doutor em história.

 

'O feijão-tropeiro vem de uma prática de tropas. Não é paulista, não é mineiro, não é goiano, não é caipira, como os paulistas costumam dizer.' - José Newton Meneses, historiador

'O feijão-tropeiro vem de uma prática de tropas. Não é paulista, não é mineiro, não é goiano, não é caipira, como os paulistas costumam dizer.' - José Newton Meneses, historiador

Gladyston Rodrigues/EM/D.A Press
 


Meneses lembra, ainda, que os primeiros livros que falam da cozinha do país, datados do século 19 e intitulados “Livros Brasileiros”, citam mais de 50 comidas mineiras e cerca de 10 baianas – e nenhuma paulista. Ou seja, a comida mineira é apontada pelos outros, não por ela mesma, há pelo menos 100 anos, o que é um forte sinal da identidade que liga Minas à cozinha.

 

Tempero regional


Muito antes da busca pela criação de pratos e receitas, a culinária mineira reflete justamente o caldeirão das culturas que passaram por aqui. E foi esse cruzamento de caminhos que, literalmente, colocou sal na nossa comida, durante o ciclo do ouro, nos séculos 17 e 18, principalmente.


Como conta a economista Vani Pedrosa, assessora em pesquisa de gastronomia do Senac e mestre em história da alimentação, era em Caeté, hoje Região Metropolitana de BH, onde se encontravam os tropeiros vindos de diversas regiões do país. “A Serra da Piedade, pelo formato côncavo e pontudo, era uma referência para os tropeiros da chegada da primeira região mineradora, o Gongo Soco, em Cocais. Era um ponto de encontro comercial”, explica a pesquisadora.

 

'Não é uma disputa, mas é um modo de vida, e o feijão-tropeiro está inserido na forma de viver dos mineiros.' - Vani Pedrosa, historiadora

'Não é uma disputa, mas é um modo de vida, e o feijão-tropeiro está inserido na forma de viver dos mineiros.' - Vani Pedrosa, historiadora

Genilton Elias/Divulgação
 


No início do século 18, houve uma explosão populacional que fez essa região ser uma das mais habitadas do mundo. Como havia um monopólio da Coroa Portuguesa na produção do sal, a especiaria era de difícil acesso e muito cara, já que só podia sair do Porto de Santos. Raridade, chegava aqui de forma clandestina, vinda com os emboabas de Mossoró (RN), misturada no charque.


A dificuldade de salgar a comida fez com que os mineiros tivessem que se virar para encontrar outros temperos e assim alimentar a grande população de comensais. “Tinha que fritar a carne e refogar alho e cebola, senão ficava tudo muito sem graça. O processo técnico foi mais elaborado em Minas – e isso refletiu no que é hoje o tropeiro mineiro”, complementa a pesquisadora do Senac.

 


“Não tem como falar que algo é originalmente mineiro ou baiano ou paulista. Mas Minas organizou melhor uma cozinha brasileira, porque os diferentes ingredientes vinham de todos os lados”, resume Vani. Isso também levou às diferenças no feijão-tropeiro dentro do estado – a farinha de mandioca, preponderante no Norte e no Vale do Jequitinhonha, e a de milho, mais comum no Sul do estado, por exemplo.


“Se o tropeiro fosse paulista, a gente encontraria o melhor tropeiro do mundo em São Paulo. Não é uma disputa, mas é um modo de vida, e o feijão-tropeiro está inserido na forma de viver dos mineiros”, diz.

 

“Tropeirogate”


Para a pesquisadora Mariana de Moraes Silveira, também professora do Departamento de História da UFMG, a reivindicação paulista do feijão-tropeiro na Wikipedia em português tem ares de uma “guerra de edição”, com contornos da famosa “trollagem”. “Ele repetia ‘paulista’ várias vezes. Me pareceu uma coisa de troll da internet, insistindo em não deixar colocar a associação com a cozinha mineira. Mais que um certo projeto de dominação paulista, pode ser uma brincadeira”, complementa a historiadora, que apelidou a guerra em torno do verbete como “tropeirogate”.

 

'Mais que um certo projeto de dominação paulista, pode ser uma brincadeira.' - Mariana Silveira, historiadora

'Mais que um certo projeto de dominação paulista, pode ser uma brincadeira.' - Mariana Silveira, historiadora

Fabricio Álvares/Divulgação
 


Mariana é coordenadora executiva do Mais Mulheres em Teoria da História na Wiki, projeto que tem, entre um de seus objetivos, a criação na enciclopédia digital de verbetes de historiadoras ainda inexistentes. Segundo ela, o público médio que edita a Wikipedia é majoritariamente de homens, brancos, com seus interesses específicos. “É claro que isso tem uma série de repercussões na plataforma”.


Qualquer um pode editar os textos, até mesmo de forma anônima, mas há um controle da própria comunidade, que tem uma hierarquia baseada nos usuários mais antigos e com mais edições – como no caso dos administradores. No entanto, um dos pilares da Wikipedia é a pluralidade de pontos – o que levou à solução do artigo com a manutenção da tríade Minas-São Paulo-Goiás, evitando, assim, a polêmica maior.

 


“Qualquer pessoa pode criar uma conta, corrigir e a Wikipedia vai ser tão boa quanto as contribuições que forem colocadas lá. Eu ainda a considero um bem público global, porque ela é uma fonte de informação ampla e mais profunda do que tendemos a achar, além de ser colaborativa. Quanto mais diversas forem as pessoas a contribuir, melhor”, finaliza a professora da UFMG.