Uma pitada de carinho, um toque de saudade e um punhado de tradições passadas de geração em geração. É ali, entre anotações feitas à mão e páginas amareladas de cadernos antigos de receitas, onde moram os segredos da boa comida. Mais do que ingredientes e instruções culinárias, esses manuscritos – muitos guardados há anos em caixas que foram esquecidas pelo tempo – representam um elo emocional com quem os escreveu. Nesta edição, embarcamos em uma jornada por memórias saborosas de quatro famílias que ainda mantêm esses registros gastronômicos.
A primeira história começa com os preparativos para o casamento da professora de gastronomia Rosilene Campolina, em 1999. “Não herdei nenhum caderno de família, mas recolhi receitas que foram da minha avó, mãe, irmãs e tias. É uma forma de resgatar gostos, cheiros e temperos familiares”, relata.
Além de salvaguardar os pratos, ela sempre viaja no tempo e acessa memórias gustativas quando se depara com as caligrafias inscritas na agenda velha. “Quando você abre as páginas para escolher alguma receita, não quer só cozinhar ou meramente fazer um prato, quer resgatar aquele momento com uma pessoa especial”, afirma.
O caderno, que teve início durante a montagem do enxoval de noiva de Rosilene, já completou “bodas de prata”, mas, mesmo 25 anos depois, o biscoito de polvilho da mãe, Dona Graça, ainda faz seus olhos brilharem como se fosse a primeira vez. “Minha mãe fazia esse quitute de forma magistral. Minha lembrança afetiva era saborear os biscoitos no café da manhã e, especialmente, em dias de chuva”, relembra, emocionada.
Com o passar do tempo, a agenda foi se transformando em uma espécie de diário. Além das receitas, fotos coletadas de revistas e embalagens, como caixas de amido de milho e lata de leite condensado, decoravam o acervo gastronômico de Rosilene. Foi aí, munida de afeto e amor pela cozinha, que a professora decidiu compartilhar a importância dos cadernos de receitas com os alunos do curso de gastronomia.
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Durante as aulas da disciplina “Cozinha brasileira”, ela começou um projeto para abordar o assunto com os universitários. “A inspiração veio da necessidade de unir o saber acadêmico ao popular, a tradição com a inovação e dialogar os 'modos de fazer' clássicos com as mais diversas técnicas contemporâneas”, explica.
Em meio a tantas receitas práticas que brotam em um deslizar de dedos no celular e vídeos extremamente explicativos, a professora enfatiza que os cadernos antigos são fontes autênticas de inspiração e conhecimento. “A inovação só funciona quando não se esquece da tradição”, reitera.
Caderneta centenária
Por volta de 1915, uma pequena caderneta enfeitada com um charmoso laço de fita cor-de-rosa foi herdada pela avó do gastrólogo Rubens Freitas. De mão em mão, ela chegou até sua mãe, mas acabou esquecido em caixas por muito tempo.
“Aos 15 anos, comecei a me interessar por cozinha e fui bisbilhotar as coisas da minha mãe. Essa caderneta me chamou a atenção, porque, além de ser toda manuscrita, com uma letra bordada, a forma da escrita é totalmente diferente do que estamos habituados”, relata.
Quando começou a estudar gastronomia, Rubens se viu diante de temas que resgatavam esse tipo de registro culinário. “Me lembro de um momento na aula em que tivemos que unir tradição e inovação, ou seja, pegamos uma receita e precisávamos fazer uma releitura moderna. Eu recorri a essa caderneta. Foi aí que vi que as pessoas estavam se distanciando dos cadernos de receitas, estava tudo digital e visual”, ressalta.
Isso o motivou a guardar o caderno consigo até os dias de hoje. Cada página – a maioria suja de gordura e até comida por traças – guarda o aroma e o sabor da história. Desde aquela receita de bolo que era sempre preparada para os aniversários, o prato tradicional das festas de fim de ano que nunca podia faltar até as opções mais inusitadas. Dentre elas, Rubens aponta o bolo de “xuxu” (com “x” mesmo, como se escrevia na época), a maionese de camarão, a sardinha com alface, ervilha e batata cozida e a torta de banana frita.
Outras foram batizadas com nomes que fazem despontar um sorriso no rosto quando lidas. “A 'Capa de Padre', por exemplo, é um bolinho de farinha com banha e ovo, feito em tamanho grande e quadrado. A 'Quem Come Casa' é um pão doce em formato de rosca. Outra interessante é a 'Raiva', um bolinho de polvilho. O segredo é que ele cresce, passa por cima da vasilha e transborda, então você passa raiva para limpar”, conta, rindo.
Herança das matriarcas
Vinda de uma linhagem de doceiras do interior do estado, a gastróloga Clariane Brandão também mantém o legado da família e herdou um caderno de 1942. “O caderno foi herança da minha bisavó, que passou para a minha avó, depois para a minha madrinha e agora está comigo”, conta.
As primeiras anotações começaram a ser feitas na Fazenda da Cachoeira, em Carmo do Rio Claro, no Sul de Minas, que foi propriedade de sua família até a construção da Usina Hidrelétrica de Furnas, quando o terreno acabou submerso. Com 82 anos, o caderno resistiu ao tempo e guarda receitas tradicionais de quitanda.
“Escrito com caligrafia de tinteiro, ele tem vários quitutes clássicos. A maioria é feita à base de milho, queijo, leite e polvilho, porque eram os ingredientes em abundância, de fácil acesso e produzidos na fazenda”, destaca.
Curiosamente, as receitas do caderno de Clariane não possuem o modo de preparo. Ela diz que isso acontecia pois as pessoas, na época, não pensavam que aquele registro seria uma forma de passar conhecimento. No entanto, há casos em que o prato é assinado por nomes próprios para demonstrar que aquela pessoa é capaz de cozinhá-lo de olhos fechados. “Por exemplo, tem um bolo de mandioca, que na família é conhecido como bolo da tia Margarida. Ela é a referência dessa receita.”
O caderno também é testemunha das tentativas e erros, das experimentações culinárias que moldaram o paladar da família ao longo do tempo. Clariane brinca ao dizer que as manchas nas folhas refletem a popularidade dos pratos entre seus antepassados. “Aquelas páginas sujas são as melhores receitas, significa que foram muito utilizadas”, acrescenta.
Imprecisão x perfeição
“A culinária tradicional tem uma gramática própria”. A afirmação da pesquisadora de ofícios tradicionais Juliana Lucinda Venturelli não é à toa. Principalmente quando nos deparamos com termos peculiares para nos referirmos às gramaturas.
As medidas eram bem diferentes de xícaras, colheres ou gramas, como usamos hoje. “Por exemplo, usava-se 1 mão de fubá ou de arroz ou 1 prato de polvilho ou açúcar, 1 cuia de milho, 2 dedos de óleo ou gordura, 1 pedaço de toucinho, 2 punhados de farinha”, confirma a professora de gastronomia Rosilene Campolina.
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As referências eram totalmente pessoais, uma vez que não havia balança ou qualquer utensílio de precisão para medir a quantidade exata dos ingredientes. “O cortador de feijão foi substituído pelo liquidificador, o ralador manual e o batedor, pelo mixer ou batedeira e até a folha de bananeira, usada para assar biscoitos, bolos e quitandas, cedeu espaço ao tapete de silicone (folhas silpat) ou teflon, assim como às folhas de papel-alumínio e papel-manteiga”, completa a professora.
Por causa disso, dificilmente, as receitas poderiam ser reproduzidas por qualquer pessoa. “Para ler os cadernos antigos, a pessoa tem que fazer parte do universo culinário. Quem não viu a receita ser feita, não consegue decifrar. Diferentemente da ficha técnica, que qualquer um pode reproduzir”, finaliza Venturelli.
Do baú ao menu
Imagine encontrar um baú do tesouro dentro de casa. Foi quase o que aconteceu com Eberton Borodinas. Em uma visita à casa da sogra, na cidade de Oliveira, Região Central de Minas Gerais, ele encontrou, completamente abandonado, um caderno de receitas que pertencia à avó de sua esposa.
“Ele estava perdido dentro de umas caixas na garagem Fui mexer nessas caixas, porque estávamos organizando a casa, e esse caderno estava lá. Eu o peguei e trouxe para casa”, comenta o chef, que mora em Belo Horizonte.
Beto, como é conhecido, pegou gosto pela cozinha depois da morte da mãe. Ele resgatou lembranças de quando a acompanhava nos afazeres de um bar e começou a trabalhar em várias cozinhas de BH, até abrir seu primeiro restaurante, o Maria Cozinha Brasileira. Em 2023, anunciou um hiato nas atividades e o fechou. Porém, o desfecho não é permanente.
Com a descoberta inesperada, o chef começou a fazer pesquisas baseadas nos registros antigos e pretende reabrir seu negócio, ainda neste mês de agosto, com um toque especial: “Quero trazer algumas receitas deste caderno para dentro do menu do restaurante.”
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O manuscrito, quase centenário, tem cerca de 400 páginas. “Ele está bem velho e detonado porque ficou muitos anos guardado”, sublinha. Apesar do desgaste temporal, o caderno é como um mapa do passado e vai orientá-lo por um mundo de sabores únicos que, em breve, vão encantar o paladar dos belo-horizontinos.
“Uma das receitas que vou testar para trazer no menu é um pão de queijo que utiliza farinha de milho. É muito antiga e eu nunca tinha visto”, adianta Beto.
Tarefa de mulher
Em geral, o ato de cozinhar era uma tarefa historicamente delegada às mulheres, assim como o hábito de manter um caderno de receitas. A pesquisadora de ofícios tradicionais, Juliana Lucinda Venturelli, explica que, normalmente, elas eram condicionadas a serem as mulheres do lar, por isso, a tradição do enxoval de casamento era começar ou herdar um caderno para essa finalidade. “Hoje, esse tipo de registro denuncia um sistema visto como patriarcal”, afirma. Como exemplo, a pesquisadora cita receitas batizadas de “biscoito experimenta nora” e “pudim espera marido”. “A primeira é difícil de fazer, então pressupõe que a nora vai fazê-la para a sogra dar o aval se ela está preparada para se casar com o filho dela. Já a segunda, é demorada de fazer. O marido ia para a rua, em lugares onde a mulher não o acompanhava, e ela fazia o prato para esperá-lo voltar da boemia”, alega.
Anote as receitas
Biscoito de polvilho mineiro da dona Graça
Por Rosilene Campolina
Ingredientes
- 2 xícaras de polvilho doce de boa qualidade e mais fino;
- 2 ovos caipira;
- 1/2 xícara de óleo;
- 1/2 xícara de água filtrada;
- 1 colher de chá de sal;
- 1 colher de chá de açúcar;
- queijo ralado (opcional)
Modo de fazer
- Coloque o polvilho numa tigela grande e misture o sal e o açúcar.
- Leve ao fogo o óleo com a água até ferver.
- Escalde o polvilho e mexa bem.
- Coloque os ovos, um de cada vez, observando a consistência, que deverá estar em ponto de enrolar (soltando das mãos).
- Se não usar ovos caipira, diminua um pouco da clara do ovo de granja.
- Se desejar, acrescente queijo ralado.
- Faça os biscoitos no formato desejado (bastão, argola ou enroscadinho).
- Frite em óleo quente (sem deixar a gordura queimar).
- Use panela de fundo grosso.
- Escorra sobre papel toalha e sirva com café ou leite queimadinho.
- Dica da dona Graça: use uma tampa para conter os possíveis espirros. Se a gordura esquentar demais, abaixe o fogo. O óleo não deve estar muito quente. O açúcar evita que os biscoitos espirrem.
Bolo de “xuxu”
Por Rubens Freitas
Ingredientes
- 6 chuchus;
- 3 ovos;
- 100ml de leite;
- 50g de queijo parmesão ralado;
- 3 colheres de sopa de Maizena;
- 2 colheres de sopa de manteiga;
- 1 colher de chá de fermento;
- sal e pimenta-do-reino a gosto
Modo de fazer
- Cozinhe os chuchus com água e sal.
- Escorra e amasse. Misture os ingredientes e bata no liquidificador. Coloque a mistura em uma travessa untada com manteiga. Leve ao forno a 180°C até assar. Pincele com manteiga e polvilhe com queijo parmesão ralado. Outra opção é regar com molho de tomate.
Bolo de mandioca
Por Clariane Brandão
Ingredientes
- 1kg de mandioca crua ralada e espremida;
- 10 ovos inteiros;
- 200g de manteiga;
- 300g de queijo meia cura;
- 375g de açúcar refinado;
- 15g de bicarbonato
Modo de fazer
- Misture a mandioca com os ovos levemente batidos.
- Adicione a manteiga amolecida e, por último, o queijo e o bicarbonato.
- Leve ao forno a 160° por aproximadamente 35 minutos, dependendo do forno.
Quindim de fubá
Por Eberton Borondinas
Ingredientes
- 2 colheres de manteiga;
- 3 xícaras de açúcar;
- 4 ovos;
- 9 colheres de fubá;
- 3 xícaras de leite;
- 1 colher de fermento em pó;
- 1 pires de queijo parmesão ralado
Modo de fazer
- Bata a manteiga com o açúcar.
- Acrescente os ovos, um por um.
- Junte o fubá, o leite misturado com o fermento e, por último, o queijo ralado.
- Misture tudo muito bem e despeje em uma assadeira untada com manteiga.
- Leve ao forno quente.
- Depois de assado, corte em quadradinhos.
*Estagiária sob supervisão da subeditora Celina Aquino