Em uma verdadeira viagem no tempo, bares e restaurantes que ocupam casarões antigos de Belo Horizonte se destacam ao oferecer mais do que apenas pratos diversos e drinques, mas também a oportunidade de explorar espaços que guardam memórias de outras épocas. É nessa rota, cercada por nostalgia, que exploramos cinco lugares que entrelaçam a culinária ao aconchego da história.
Já pensou como seria entrar em uma casa onde, com um pouco de sorte, você poderia se sentar no sofá, pegar um livro e, quem sabe, tomar um café com o mineiro Fernando Sabino? É assim que começa a experiência no café e restaurante Zuzunely, reinaugurado em um imóvel no Bairro Santo Agostinho, Região Centro-Sul da capital, onde a memória do escritor ainda parece circular pelos ambientes.
Tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), a casa, projetada em 1940 por Oscar Niemeyer e Roberto Burle Marx, foi erguida para o então governador, Benedito Valadares. Sua esposa, no entanto, considerou-a muito distante para viverem. Foi quando a filha do casal, Helena Valadares, casou-se com Sabino e eles se tornaram os primeiros moradores da residência. O imóvel foi lar do escritor e sua companheira até se mudarem para o Rio de Janeiro.
Depois disso, outra família habitou a moradia, mas logo começou a alugá-la para comércios,como lojas de roupa e até estúdio de fotografia. Posteriormente, durante a pandemia, a casa abrigou um restaurante vegano, que se mudou para o Mercado do Cruzeiro. Finalmente, no começo deste ano, o espaço deu lugar ao Zuzunely.
Encontro não planejado
A sócia e curadora do restaurante, Hanna Litwinski, relembra como foi o encontro com o casarão. “Já tenho um ‘pé’ em casas históricas, pois moro em uma que foi tombada no Lourdes. Por causa dessa paixão própria, estava procurando uma no Santo Agostinho”, comenta. A caminho de uma visita a um imóvel, Hanna se deparou, ao estacionar seu carro na Rua Araguari, com uma construção que despertou sua curiosidade. Lá estava a casa escolhida: sem placa, sem ocupação, apenas um monumento fechado no tempo.
“Corri atrás para saber a situação atual dela e cheguei até a proprietária. Descobri que ela estava à venda, sem intenção de aluguel. Mas, com uma conversa com a dona, consegui uma exceção”, comemora. O Zuzunely, então, começou a ganhar forma.
O desejo da dona era transformar o lugar em um espaço cultural, e isso veio de encontro à proposta do restaurante. “Instalamos na casa um espaço de troca de livros, batizado com o nome de Fernando Sabino, em homenagem a ele. As pessoas podem retirar qualquer título livremente e também aceitamos doações. Tem um sofá grande nesse espaço, então muitos clientes ficam lá tomando um café e lendo”, destaca a sócia.
Além do canto literário, uma galeria de arte, que será inaugurada no dia 18, com curadoria do artista Rodrigo Borges, traz obras que remetem à época do modernismo. “A ideia é que o espaço acolha vários artistas. De tempos em tempos, vamos mudar as exposições”, explica Hanna.
“Alma de casa”
Com um pouco mais de um mês de funcionamento, o Zuzunely já atrai um grande número de clientes, que se encantam pela estrutura do lugar. Hanna Litwinski diz que o diferencial do restaurante está diretamente ligado à estética. “Tem uma alma de casa e tira o distanciamento do público, que se sente muito acolhido. As pessoas falam ‘o espaço está belíssimo, muito bem decorado, nos sentimos muito bem aqui’”, declara. Moradores antigos também relembram os dias em que o imóvel era uma residência.
Desde o nome até a comida, o restaurante mantém a afetividade do “lar”. O nome Zuzunely é uma homenagem às avós da chef Bruna Haddad, Zulmira e Nely. Na cozinha, ela comanda as criações do cardápio de brunch com o mesmo carinho das matriarcas, fontes de inspiração do seu trabalho. “O campeão de vendas é o muffin de mirtilo com chocolate branco, raspas de limão siciliano e um crocante por cima. Além das tostadas, sanduíches, rabanada e waffle de pão de queijo”, ressalta Hanna. O restaurante ainda vai incluir no menu pratos para o almoço.
Paixão por antiguidades
A Pão do Furtini também encontrou em uma casa histórica o lugar ideal para instalar uma cafeteria. Fundada em 2018, o negócio funcionava em uma loja do Edifício Maletta, no Centro da cidade, e depois expandiu para a segunda unidade no Bairro Cidade Jardim, Região Centro-Sul. No entanto, ambos os espaços começaram a ficar pequenos e limitados, o que motivou, no fim de 2023, a busca por um novo local que comportasse as duas lojas.
Assim como Hanna Litwinski, do Zuzunely, os sócios Bernardo Mosci e Rodrigo Furtini (ele começou produzindo e vendendo pães em casa), também compartilham a paixão por casas tombadas. “Colocamos na nossa cabeça que queríamos uma para ser a nova cara da Pão do Furtini”, afirma a dupla.
Inicialmente, os dois “bateram na trave” com três casarões. Depois de tentativas frustradas, Rodrigo e Bernardo encontraram a “casa rosa do Santo Antônio”, como é conhecida no bairro. “Estávamos voltando de uma das visitas, desapontados por não conseguir alugar uma casa. Ao subir a Rua Carangola, avistamos essa casa. Marcamos, então, uma visita de 15 minutos e a alugamos”, relembram.
Antes de ser a Pão do Furtini, a casa rosa, de 1909, foi lar de diversas famílias pioneiras do bairro, entre elas, uma idosa que fazia doces e os vendia sob encomenda. Após a desocupação, passou a abrigar cinco lojas, ao mesmo tempo. “A parede que dividia os comércios foi derrubada e virou um grande salão de dois andares, que foi ocupado por um restaurante de comida japonesa, mas fechou durante a pandemia. Desde esse período, a casa ficou vazia”, explicam Rodrigo e Bernardo.
A dedicação ao patrimônio histórico e o zelo pela preservação encantaram tanto os moradores quanto os clientes, que frequentemente visitam o local, não apenas pelos quitutes artesanais, mas pela beleza e história do ambiente. “O belo-horizontino gosta de valorizar o que é antigo”, acreditam os sócios.
Antes e depois da reforma, os dois receberam uma recepção calorosa da vizinhança. “Muitos deles passavam em frente à construção, acenavam e nos parabenizaram pela coragem de cuidar do patrimônio da cidade.”
Agora, com um mês de portas abertas, a Pão do Furtini já conquistou a vizinhança tanto pela ousadia de revitalizar a casa como pelo cardápio irresistível. Os destaques da cafeteria são a rabanada doce, as tostadas de rosbife e de avocado, o bolo “chocolatudo” e outras delícias da padaria artesanal.
Quase centenário
O Seu Bias, restaurante nomeado em referência à Avenida Bias Fortes, onde fica localizado, escolheu uma casa tombada que tem 97 anos para “morar”. O imóvel faz parte do palacete da família Falci, composta hoje por 11 irmãos. Na mansão ao lado do restaurante, ainda vivem alguns membros dessa família. Já o anexo, onde está o restaurante, por muitos anos acolheu um ateliê de vestidos de noiva.
O projeto nasceu de uma parceria entre os sócios Vitor Moretti e Pedro Henrique Amorim. “Nós nos conhecemos em Brasília, durante um evento de gastronomia, e decidimos abrir algo juntos nessa área”, relata Vitor. Quando voltou a BH, Pedro passou em frente à casa e se encantou. “Quando a alugamos, foi uma surpresa, porque tanto os investidores quanto os engenheiros e outros profissionais nunca tinham enxergado a casa como um restaurante”, diz.
As adaptações feitas para receber o negócio foram pensadas para manter o máximo possível da originalidade da residência. “Ela estava muito abandonada, havia sido muito modificada, tinha outros pisos por cima do original. Buscamos trazer à tona o charme e a elegância que ela tinha, a partir de texturas, cores e vitrôs”, detalha Vitor. Inaugurado este ano, o Seu Bias ficou em reforma por 14 meses.
O espaço interno se divide em dois andares, além das mesas espalhadas pelo jardim. “O estilo chama a atenção dos clientes. Muitos dizem que a sensação é como jantar em uma casa de filme. Quando as pessoas caminham no andar de cima, no piso de madeira, ou movem alguma mobília, o barulho pode ser ouvido no térreo”, acrescenta o sócio.
O menu da casa também transparece a elegância do cenário. Assinado pelo chef Mário Portella, o cardápio tem a parilla como protagonista. Os carros-chefe são o ancho servido com purê de queijo canastra e farofa de bacon, o “Arroz caldoso do mar” (com camarão, polvo e bacon) e o “Arroz caldoso do campo” (feito com costela bovina assada no forno a lenha durante três dias).
Se a intenção for estender até o happy hour, Vitor, que também é mixologista, é responsável pela carta de drinques autorais. “O mais pedido é o Astral, à base de gim de cassis com espuma de cereja marrasquino e toque de purê de limão siciliano para trazer frescor.” Ele ainda explora ingredientes exóticos como puxuri, patchouli, jasmim manga e baunilha banana.
Casa de vó
Uma casa preservada no Bairro Floresta, na Região Leste da capital, guarda o Copa Cozinha, que nos transporta de imediato para uma “casa de vó”. A decoração, cheia de antiguidades, remete ao acolhimento pelo qual os mineiros são reconhecidos. Tombado pelo patrimônio histórico, o imóvel é datado dos anos 1940.
“Antes da existência da Copa, a casa era de uma família, que acabou se mudando. Depois da mudança, a casa abrigou, por um período curto, o colégio Edna Roriz”, conta uma das sócias, Maíra Sette. Depois disso, a casa foi o refúgio do Museu da Força Expedicionário Brasileira (FEB). Quando o acervo foi embora, recebeu uma breve ocupação como comitê político.
“A casa ficou um tempo desocupada, até a alugarmos na pandemia. A Copa já existia no Mercado Novo, em um espaço pequeno, mas vimos que precisávamos de um lugar seguro, com jardim e uma área externa maior para receber as pessoas”, relata.
A casa de quitandas foi criada por um trio de amigas nascidas no interior de Minas. Além de Maíra, Cristina Gontijo e Julia Queiroz cresceram na rotina de casa cheia e refeições que se estendiam durante todo o dia. Ao se mudarem para a capital, criaram um projeto para matar a saudade de casa.
As três logo começaram a decorar a casa, com o objetivo de criar um ambiente íntimo e transmitir uma sensação de familiaridade. “Apesar de ser um restaurante, cada cômodo tem características muito próprias, a sensação é de que alguém realmente vive aqui”, pontua Maíra.
As paredes pintadas em tons claros recebem louças clássicas, quadros e outros objetos que contam histórias de famílias inteiras, fazendo com que o afeto circule pelo ar. “É quase como um museu. As pessoas ficam passeando pelos cômodos identificando objetos que também fazem parte da história dos próprios lares”, acrescenta.
O cardápio é extenso, com opções de café da manhã e brunch. Dentre os destaques, estãoo pão sovado com casquinha de queijo curado na chapa, os crocantes (doce-assinatura dacasa, com massa amanteigada e recheios de goiabada e doce de leite), broa de fubá, roscatrançada de mandioca, pãezinhos de abóbora com recheio de carne de panela desfiada eempadão de frango caipira.
Maíra adianta que o Copa vai ganhar mais uma unidade, também em um casarão antigo. A expectativa é de que a inauguração seja ainda este ano.
Charme retrô
Um toque oriental e outro mineiro deram origem ao Kanpai, restaurante dedicado à culinária japonesa contemporânea. Situado em uma casa tombada de 1938, o lugar já está em sua segunda unidade, sendo a primeira no Sion.
“Estávamos negociando um lugar no Vila da Serra, em 2020, mas, com a pandemia, recuamos. Quando o mercado voltou mais aquecido, recebemos a informação de que havia uma casa antiga no Lourdes”, relembra o sócio, Lucas Oliveira.
Segundo ele, tudo dentro do imóvel era antigo e quem tomava conta dela era uma idosa que mantinha uma relação de confiança com a família proprietária. Quando a alugou, Lucas afirma que os reparos foram necessários nos sistemas hidráulico e elétrico, além de pintura e revitalização dos pisos, sem alterar o “art déco” que o casarão entrega. “A escadaria, os vitrais, janelas e outras coisas possuem um charme retrô”.
Lucas ainda sublinha os relatos que ouve dos clientes. “Quando as pessoas visitam, alguém sempre fala: ‘minha bisavó morava aqui… meu quarto era ali… eu brincava nesse espaço… aqui embaixo funcionava dessa forma…”. Ele ressalta como foi importante ouvir as pessoas que conviveram com a casa e como isso permitiu criar conexões.
Questão de sobrevivência
Os empreendedores compartilham a ideia de que a ocupação pela gastronomia desses espaços na cidade é a melhor forma de fazer com que eles perpetuem ao longo dos anos. Por outro lado, lamentam ainda haver muitos deles se perdendo no tempo por causa das dificuldades de mantê-los ou pela burocracia de conseguir alugá-los. “É uma maneira de trazer atenção para eles, ajudar com que se mantenham vivos, para que a população possa frequentar. O valor da história é poder sentir como as pessoas viviam”, conclui Maíra Sette, sócia do Copa Cozinha.
Serviço
Zuzunely (@zuzunely_)
Rua Araguari, 1000 – Santo Agostinho
(31) 97190-2436
Pão do Furtini (@paodofurtini)
Rua Primavera, 21 – Santo Antônio
(31) 98473-8820
Seu Bias (@seubias_)
Avenida Bias Fortes, 161 – Lourdes
(31) 97220-4999
Copa Cozinha (@copa_cozinha)
Avenida Francisco Sales, 199 – Floresta
(31) 99745-4456
Kanpai (@kanpaibh)
Rua Tomaz Gonzaga, 388 – Lourdes
(31) 3656-4621
*Estagiária sob supervisão da subeditora Celina Aquino