Situada aos pés da Cordilheira dos Andes, Mendoza já é uma província (aqui falamos estado) muito conhecida pela produção de vinhos. E, cada vez mais, a região desponta pela qualidade da comida. A ida do Guia Michelin, que premiou 17 restaurantes com estrelas e indicações, reconhece esse esforço. “Temos que agradecer ao vinho por nos ajudar a nos posicionarmos como um destino gastronômico”, pontua a chef Flavia Amad, que está à frente de dois indicados: Osadía de Crear (na vinícola Susana Balbo) e La Vida (no hotel Susana Balbo Unique Stays).
Quando voltou a Mendoza, há quatro anos, Flavia ficou impressionada ao ver a evolução gastronômica da sua cidade e entorno. Pelo que se lembrava, havia muitos vinhos e vinícolas, mas pouquíssimos restaurantes (“três ou quatro, todos clássicos”). A realidade, naquele momento, era bem diferente.
Para que pudesse elaborar o menu do Osadía de Crear, ela começou um trabalho minucioso de identificar o que Mendoza tinha a oferecer de produtos. A cidade é um deserto do ponto de vista do solo e do clima, com amplitude térmica que favorece o cultivo de uvas, mas existe pouquíssima disponibilidade de água. Os cursos d'água não são rios, mas valas com água de degelo da cordilheira e dos sistemas de irrigação, essenciais para o desenvolvimento das videiras. Assim como os “lagos”, que, na verdade, são reservatórios e viram oásis na paisagem.
Por incrível que pareça, existe uma oferta abundante de ingredientes. Segundo Flavia, o melhor tomate da Argentina é de Medonza, que também é grande produtora de alho e cebola. Ao lado da vinícola, há uma propriedade que cultiva batatas. Ela também cita pera, pêssego, abóbora, beterraba, berinjela, amêndoa, nozes e pistache. De peixe, destacam-se a truta e o peixe-rei. A chef ainda fala de carne de cabra, pato e wagyu. É bem comum o uso de moela de boi (molleja), sempre presente no assado mendoncino.
“Sempre digo aos chefs que, se hoje fazemos parte dessa grande evolução que Mendoza está vivenciando a nível gastronômico, temos que ser 100% gratos aos produtores. Se não tivéssemos os lindos produtos que temos, não poderíamos fazer a gastronomia que estamos fazendo”, comenta. E são esses ingredientes que Flavia leva à mesa trabalhados com bastante técnica.
No Osadía de Crear, você pode escolher entre o menu de quatro e o de seis passos (R$ 513 e R$ 1.140, respectivamente, sem harmonização). Já o La vida oferece jantares de sete passos (R$ 855 harmonizado e R$ 513 sem vinhos) e a experiência Mesa da Chef, com 14 etapas (R$ 1.425 harmonizado e R$ 798 sem vinhos), em uma mesa bem próxima da cozinha, para que os clientes possam interagir com Flavia.
Ramos e folhas
É interessante ver como a chef leva as videiras para a mesa. Dois exemplos: o bolinho de espinafre e alho negro é servido na ponta de um ramo e as folhas são aproveitadas em um crudo de peixe-rei com toranja, funcho e cebola roxa.
O prato que une truta, purê de pimentão amarelo, óleo de couve kale e conserva de couve-flor é muito representativo do terroir de Mendoza. Por ser um dos únicos peixes encontrados na região, a truta aparece com frequência, muitas vezes curada. Nesse prato, estava grelhada. Já a couve-flor remonta ao hábito antigo de se conservar alimentos para comê-los o ano todo. Flavia se lembra bem da avó produzindo conservas de todo tipo na enorme mesa de jantar e da despensa da casa lotada de potes.
Vale falar também da criativa sobremesa de queijo azul, marmelo, nozes e chocolate branco com gergelim branco. Chama a atenção a combinação inesperada, que surpreende o paladar, e também a presença do marmelo, outro produto típico da região.
“Mendoza é uma grande produtora de marmelo e ele sempre está nos meus menus de alguma maneira. Muito difícil um chef daqui não usar. Assim como o alho, é muito versátil”, comenta. Ele pode estar em calda, como conserva, geleia ou uma massa que chamam de pão de marmelo. Na sobremesa, a geleia se transformou em uma placa crocante.
Outro ingrediente que Mendoza se orgulha em ter é a jarilla, planta encontrada nas montanhas, que tem notas cítricas. “O mendoncino usa muito quando vai para a montanha fazer um churrasco no fim de semana. Quando a lenha pega fogo, colocamos a jarilla e isso dá uma fumaça muito especial e aromática”, explica. Em um prato com várias texturas de ervilha e panceta, ela surge em forma de espuma, levando um frescor para a receita.
Chef por acaso
Nascida em Mendoza, Flávia estudou administração gastronômica em Buenos Aires, mas não se sentia completa. Um dia, seu pai ligou de Miami, nos Estados Unidos, onde morava, contando que havia aberto uma escola de gastronomia perto da sua casa. O nome era Le Cordon Bleu. Ela não pensou duas vezes. Arrumou as malas e se mudou para lá. Trabalhou por um tempo em Nova York antes de voltar para Mendoza, por amor. Lá se casou e teve um filho.
Flavia foi contratada para ser a gerente de operação do restaurante. Isso era em setembro de 2020, auge da pandemia. “As pessoas estavam assustadas, não queriam sair de casa e precisávamos encontrar formas de atrair clientes. Passamos a oferecer piquenique no jardim, brunch aos fins de semana e o chef consultor, que morava na Espanha, ficou impossibilitado de viajar. Então, como tinha todo um background de gastronomia, comecei a criar os pratos”, conta. Quando viu, já tinha assumido a cozinha.
Hoje ela administra e é chef dos dois restaurantes do grupo – em 2022, foi inaugurado o hotel Susana Balbo Unique Stays, a cerca de 20 minutos da vinícola, onde funciona o La Vida, também indicado pelo Guia Michelin. Com esse trabalho, une dois mundos. Flavia gosta muito de números e estatísticas, ao mesmo tempo em que se interessa pela estética e pelos sabores. Então, divide-se, com entusiasmo, entre dias de escritório e dias de cozinha.
Pratos versáteis
A chef sempre se interessou por comida. A avó materna, italiana, cozinhava pratos inesquecivelmente saborosos. Pelo outro lado da família, vêm a influência árabe e a paixão por sobremesas. Tanto na vinícola quanto no hotel a chef faz uma cozinha de produtos, sempre valorizando o terroir de Mendoza e permitindo que o vinho brilhe, afinal, ele é a estrela da marca. Os pratos são suficientemente versáteis para que harmonizem com pelo menos dois ou três rótulos da carta.
“Fazemos uma comida deliciosa que acompanha o vinho, que mostra o que é Mendoza, que enche os olhos na apresentação e tem muita técnica. Existe o mito de que, se houver muita técnica, não haverá sabor, mas não é verdade. Temos que encontrar o equilíbrio entre técnica e sabor.”
Com 41 anos de idade e 22 de cozinha, Flavia está em um momento da carreira em que pensa muito sobre o que mais pode fazer para que Mendoza ocupe seu lugar no mundo como destino gastronômico, e isso passa por desde usar produtos locais até formar cozinheiros. Para ela, as duas indicações no Guia Michelin são, sim, um sinal de que está no caminho certo, ainda mais sendo mulher, mas não devem ser o foco.
“Estou feliz e agradecida pelas menções dos dois restaurantes, mas sempre digo para a equipe que o nosso objetivo não é estar no guia Michelin nem ganhar uma estrela amanhã. Isso tem que ser consequência de fazer bem as coisas. O nosso objetivo é trabalhar com coragem, inovação, excelência, qualidade e amor”, defende.
Anote a receita: Arroz selvagem com legumes assados, geleia de berinjela e maionese de alho negro
Ingredientes
- 4 cebolas;
- 2 talos de aipo;
- 1 cabeça de alho;
- 4 unidades de alho-poró;
- 2 litros de água;
- 4g de pimenta;
- óleo de girassol;
- 1 pimentão vermelha;
- 1 pimentão verde;
- 2 berinjelas;
- 2 dentes de alho;
- 3 cebolas;
- 1 tomate;
- 80g de azeite;
- sal e pimenta a gosto;
- 10g de páprica defumada;
- 1kg de berinjela;
- 120g de açúcar;
- 0,5g de canela em pó;
- 38g de suco de limão;
- 1 ovo;
- 0,5 cabeça de alho negro;
- 125g de óleo de girassol;
- 2g de sal;
- 1g de pimenta;
- 400g de arroz negro selvagem;
- 180g de sofrito;
- 70g de azeite;
- 1,6kg de caldo de legumes;
- sal e pimenta a gosto;
- 30g de manteiga;
- 50g de queijo da Sardenha
Modo de fazer
- Lave bem os legumes e corte-os em mirepoix.
- Numa panela, aqueça um pouco de óleo de girassol e doure os grãos de pimenta e a cabeça do alho cortada ao meio.
- Adicione os legumes cortados e doure-os levemente.
- Despeje a água fria e deixe ferver.
- Reduza o fogo e cozinhe por aproximadamente 30 minutos.
- Passe o caldo por uma peneira fina e reserve.
- Para o sofrito, lave bem os legumes (pimentões, berinjelas, alho, cebola e tomate) e coloque-os num tabuleiro com um pouco de azeite.
- Cozinhe em fogo alto até que estejam cozidos.
- Descasque as cebolas e os pimentões (e as berinjelas, se desejar) e processe tudo até obter uma pasta.
- Tempere com sal, pimenta e páprica defumada a gosto.
- Para a geleia de berinjela, queime as berinjelas no fogão ou leve para a grelha.
- Descasque-as e reserve a polpa.
- Numa panela, cozinhe a polpa da berinjela com o açúcar, o suco de limão e a canela até obter a consistência desejada. Reserve.
- Para a maionese de alho negro, mergulhe o alho negro em água por cerca de 30 minutos.
- Em seguida, descasque os dentes de alho negro. No liquidificador, coloque o ovo, os dentes de alho negro descascados, o sal e a pimenta.
- Misture até obter uma pasta homogênea.
- Adicione o óleo de girassol em um jato enquanto continua a misturar até emulsionar. Reserve.
- Numa panela, aqueça o caldo de legumes.
- Em outra panela grande, aqueça o azeite e frite o arroz até começar a ficar transparente.
- Adicione o sofrito e misture bem.
- Adicione o caldo de legumes quente, deixe ferver e tempere com sal e pimenta.
- Cozinhe o arroz em fogo médio, tomando cuidado para que não fique sem líquido nem grude.
- Quando o arroz estiver cozido, junte a manteiga e o queijo da Sardenha ralado, integrando bem.
- Deixe descansar alguns minutos antes de servir.
- Coloque um pouco de geleia de berinjela no fundo do prato, sirva o arroz e decore com a maionese de alho negro.
Serviço
Osadía de Crear
@osadiadecrear
La Vida
@restaurant.lavida