Na foto, Juliana Duarte, chef do restaurante Cozinha Santo Antônio -  (crédito: Luisa Macedo/Divulgação)

Na foto, Juliana Duarte, chef do restaurante Cozinha Santo Antônio

crédito: Luisa Macedo/Divulgação

Em Belo Horizonte, dois restaurantes têm mostrado que a poesia pode ser tão nutritiva quanto a comida. No Cozinha Santo Antônio, no Bairro Santo Antônio, e no Dona Lucinha, na Savassi, ambos na Região Centro-Sul, a arte literária ocupa um espaço ao lado da gastronomia, trazendo ao público experiências que demonstram o encantamento da fusão dos versos aos sabores. São noites em que o aroma de pratos especiais encontra o som cadenciado de poemas declamados, em uma atmosfera única, quase mágica.


Era março de 2023 quando a chef Juliana Duarte, do Cozinha Santo Antônio, administrava o restaurante que só funcionava durante o dia. “Comecei a pensar em abrir a noite e resolvi que seria uma vez por semana. Escolhi a quinta-feira pois é um dia que eu acho gostoso de sair, é quando começamos a desacelerar”, relembra. Mas, para funcionar, ela desejava uma atração cultural diferente da rotina diurna.


“Me associei à gestora cultural Lena Cunha e à Raquel Pedras, artista e poeta. Juntas, formamos então um projeto de gastronomia, música e poesia: a ‘Quinta dos bons encontros'”, conta Juliana. Sempre neste dia, poetas de BH – e, às vezes, de outras cidades – dividem os versos com o público. Raquel é uma das curadoras e, muitas vezes, lê poemas dos convidados, enquanto músicos acompanham em ritmo de chorinho ou samba. 

 

 

“Em determinado momento abrimos o microfone para as pessoas presentes lerem os poemas preferidos. A poesia é um respiro em meio a confusão do dia a dia, é uma hora para se fazer uma pausa, escutar as palavras com calma e deixar aquilo reverberar. É um momento de concentração”, descreve a chef.


Os encontros são livres, mas, por vezes, carregam um tema ou uma homenagem. “Já celebramos a saudade, a poeta Adélia Prado; no Dia das Crianças, focamos na infância; e, às vezes, o foco é o poeta convidado, a fim de que o público conheça o trabalho do artista”, explica.


O cardápio acompanha a programação. Em uma noite inspirada em Paulinho da Viola, Juliana conta que criou pratos inspirados nas músicas. “Foi uma delícia pegar os títulos das canções e pensar nas receitas. Uma delas, por exemplo, chama Coração Vulgar, então fiz um coraçãozinho temperado com Coca-Cola, uma receita familiar”, relata. 

 

Na foto, o trio Raquel Pedras, Juliana Duarte e Lena Cunha, no comando da 'Quinta dos Bons Encontros'

Na foto, o trio Raquel Pedras, Juliana Duarte e Lena Cunha, no comando da 'Quinta dos Bons Encontros'

Arquivo Pessoal

 

Outro jantar marcante contou com a presença da escritora belo-horizontina Carla Madeira. Nesta ocasião, foi feita a leitura de trechos dos livros e conduzida uma conversa com o público. Para acompanhar, Juliana preparou um menu a partir de pratos que são citados em cada obra da autora. Foram eles: Empada de Aurora, com uma massa que desmancha na boca acompanhada de recheio de frango ‘pinga e frita’ (Tudo é Rio); Coq au vin de Veneza, um frango cozido no vinho com cogumelos, cebolas caramelizadas, batatas e fatias de baguete (Véspera); e para a sobremesa, uma leitura poética do bolo de laranja de Biá (A natureza da mordida).

 

 

Nesta quinta (28/11), o menu será dominado por opções de comida de boteco, ao som de chorinho de Francisco Campos e poemas declamados por um cliente que se tornou figura assídua nos encontros. “Começamos por gosto. Adoro poesia, e a ideia surgiu do desejo de trabalhar e mostrar isso. Hoje, criamos um espaço de divulgação dessa arte e da leitura em voz alta, que faz toda a diferença. Fico feliz de estar proporcionando um lugar para os poetas divulgarem o trabalho deles”, comemora a chef. Para participar, basta reservar sua quinta-feira e pagar um couvert simbólico de R$ 20, além do que for consumido na casa.


'A poesia está no ar'


Enquanto isso, no Dona Lucinha, a poesia chegou para ressignificar o espaço de um restaurante que carrega a ancestralidade mineira em cada detalhe. Márcia Nunes, que lidera a casa, explica que a ideia nasceu de uma parceria com a declamadora Laene Freire. “Temos uma amizade profunda e antiga e nos entendemos muito pela poesia”, afirma ela.


Durante três anos antes da pandemia, elas realizavam saraus no restaurante, nas terceiras terças-feiras de cada mês. “Chamava-se Armazém de Poesia. Era muito espontâneo e participavam amigos amantes da arte. Tinha um sino no restaurante e a pessoa que desejasse declamar batia-o para entrar na fila. Eram noites livres, mas às vezes destinadas a homenagear um poeta específico, como Carlos Drummond de Andrade, Cora Coralina e Fernando Pessoa, e sempre relacionávamos com algum prato ou bebida”, detalha Márcia.

 

 

A pandemia, no entanto, interrompeu os encontros, mas não o desejo de trazer os versos de volta. Foi então que Laene propôs algo novo: um menu de poesia. “Um cardápio de poemas tal qual nós temos o menu de comida, para o garçom levar até a mesa e oferecer ao cliente uma declamação. A Laene preparou um repertório de poemas que ela declama, e um texto é entregue ao público com explicações sobre a noite”, comenta.

 

Na foto, Márcia Nunes do Dona Lucinha

Na foto, Márcia Nunes do Dona Lucinha

Jair Amaral/EM/D.A Press

 

A pessoa interessada escolhe um poema do cardápio, faz o pedido ao garçom, e este acende uma vela na mesa. Esse é o sinal para a declamadora Laene se aproximar e trazer os versos exclusivos para o cliente e seus convidados. O momento foi nomeado como “Poesia à Mesa” e acontece durante a noite, de 19h às 22h. O dia ainda não é fixo, por isso, pode variar toda semana, mas a ideia é que aconteça às terças. “O intuito é que outros declamadores tragam o próprio repertório para que a frequência aumente”, diz.

 

 

A iniciativa, mesmo recente, já tem preenchido o ambiente com uma emoção diferente. “Recentemente Laene declamou Navio Negreiro, de Castro Alves, para duas mulheres negras norte-americanas, e foi surpreendente a beleza como elas manifestaram a emoção. Aqui, a poesia está no ar agora. Quando os clientes veem o cardápio falam: “Que coisa linda! Eu quero ouvir isso ou aquilo”. Há uma vocação para a cultura aqui dentro. Isso elevou as experiências no restaurante”, destaca Márcia. 

 

 

A casa possui uma tradição de 34 anos de cozinha de raiz, e, por esta razão, é possível encontrar pratos que trazem memórias afetivas à tona, como costelinha com ora-pro-nóbis, canjiquinha, dobradinha com feijão branco e feijão-tropeiro. “Os visitantes já encontram aqui uma nutrição de muita ancestralidade”, garante ela. Agora, entre pratos mineiros, os clientes encontram um cardápio literário com versos de Castro Alves, Adélia Prado, Manuel Bandeira, Vinícius de Moraes, Cecília Meireles, Cora Coralina e outros gigantes.


Serviço

Dona Lucinha

R. Padre Odorico, 38 - Savassi

(31) 2127-0788

 

Cozinha Santo Antônio

R. São Domingos do Prata, 453 - Santo Antônio

(31) 98218-6427

 

*Estagiária sob supervisão do subeditor Thiago Prata